4 de fevereiro de 2025

São Bernardino de Sena e a publicidade em prol do Evangelho

A estratégia de marketing: criando soluções para as necessidades

Quem nunca se irritou com um anúncio publicitário? Muito provavelmente você também já se estressou com o panfleteiro que o parou na rua para lhe entregar um flyer, com os comerciais que interromperam o vídeo que você está vendendo e os spams que lotam em sua caixa de e-mail.

São Bernardino de Sena e a publicidade no prol do Evangelho

Crédito: Iryna Melnyk/GettyImages

O excesso de informações e de anúncios que nos cercam nos dias atuais se torna um desafio para os profissionais de Marketing, que precisam, a todo custo, chamar a atenção de seus consumidores. Por conta disso, a comunicação é cada vez mais personalizada, e uma estratégia utilizada é específica para as necessidades de cada indivíduo. Sendo assim, é preciso entrar na realidade do consumidor, a fim de entendê-lo e convencê-lo de que o produto comercializado pode ajudá-lo a resolver seus problemas.

Marketing 2.0 no século XIV? Uma lição inesperada de São Bernardino

Apesar deste olhar voltado para o cliente ser recente – um conceito que ficou conhecido como Marketing 2.0 –, o padroeiro dos publicitários já aplicou essa "técnica" na virada do século XIV para o século XV. São Bernardino de Sena, nascido na Itália em 1380, foi um dos maiores pregadores do seu tempo e soube como "convencer seu público" a aceitar o Evangelho.

Após se tornar órfão com apenas sete anos, Bernardino foi criado por duas tias que alimentaram a fé em seu coração. Na juventude, estudou na Universidade de Sena, mas abandonou tudo para ingressar na Ordem Franciscana. Na vida religiosa, ele desenvolveu seu intelecto, estudando os grandes doutores e teólogos da Igreja. Contudo, foi o mundo dos camponeses que deu o contributo definitivo para a sua formação.

A "conversão" de São Bernardino, um modelo de comunicação eficaz

Em meio ao povo, o frei Bernardino aprendeu expressões e anedotas, e quando se tornou um pregador, passou a explicar o Evangelho de uma forma mais compreensível. Para além da simplicidade, suas pregações foram transmitidas por uma vivacidade que era capaz de fazer vibrar o coração desde as pessoas mais humildes até os mais instruídos. A vivência da fé, transmitida com verdade, faz com que o Evangelho não somente alcance aqueles que ouviram o frade falar, mas também os convencesse da necessidade de ter também a presença de Jesus em seus corações.


Se a publicidade toca as necessidades do público-alvo para vender uma solução em forma de produto ou serviço, São Bernardino de Sena foi capaz de revelar ao povo como apenas Deus poderia ajudá-los em todos os seus sofrimentos e angústias. Durante sua vida, o religioso prometeu anunciar o Evangelho por toda a Itália, levando milhares de pessoas a se converter.

Que, a exemplo de São Bernardino de Sena, sejamos capazes de olhar para aqueles que estão ao nosso redor e, compreendendo suas dores, proclamar verdadeiramente – e não como meros anúncios que todos tentam ignorar – a salvação que vem de Deus.

São Bernardino de Sena, rogai por nós!

Gabriel Fontana
Jornalista da Comunidade Canção Nova


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/atualidade/sao-bernardino-de-sena-e-a-publicidade-em-prol-do-evangelho/

3 de fevereiro de 2025

Ancorados na esperança, o fundamento para todo cristão

A jornada do peregrino guiado pela esperança cristã

A esperança é a âncora do peregrino. Sem esperança, faltará a luz indispensável para o caminho de cada pessoa. A luz da esperança dissipa sombras, afronta e vence o medo, firma os passos na direção certa, com realismo, escancarando as portas da vida à ação do alto. A esperança imprime a orientação, indicando a direção e a finalidade da existência humana, uma compreensão que emoldura o horizonte deste Ano Jubilar 2025, celebrado pela Igreja Católica, a todos oferecendo a oportunidade de ser peregrinos de esperança. Tornar-se peregrino de esperança é qualificação que se desdobra em profundo sentido humanístico e espiritual, possibilitando corrigir rumos na contemporaneidade, com entendimentos novos, capazes de inspirar o necessário equilíbrio humano-ecológico.

Ancorados na esperança

Créditos: Liudmila Chernetska

Assim, a indicação sábia do apóstolo Paulo, escrevendo aos Romanos no século primeiro da Era Cristã, precisa ser sempre lembrada: "Alegres na esperança, pacientes na tribulação, perseverantes na oração". Transbordar em esperança para alargar corações, convencidos de que o amor é o único caminho de reconciliação, de construção da fraternidade universal. A alegre esperança, quando vivida, fecunda, no coração, o entusiasmo de um amor oferente, sustentando um profundo sentido social e político da cidadania. Ajuda a romper as amarras dos interesses mesquinhos, das manipulações e da ganância. Capacita o ser humano para exercer a generosidade gratuita – a oferta de um sorriso, um gesto de amizade, um olhar fraterno, uma escuta sincera, um serviço gratuito.

A generosidade é o pilar da civilização, a esperança em ação

Generosidade especialmente exercida quando se oferece as próprias aptidões e responsabilidades profissionais ao propósito de construir um horizonte civilizatório marcado pela amizade social. A esperança capaz de inspirar transformação não é uma esperança qualquer, nem mesmo consiste em aposta cega, fundamentada em sentimentos que, não raramente, estão distantes da realidade. Ela tem propriedades para ancorar os peregrinos, razões que produzem luz e vigor.

A esperança que não confunde tem fundamento divino, portas abertas para a vida eterna, iluminando de modo adequado a vida que passa como um piscar de olhos. Trata-se de esperança com luz inigualável, que leva a uma verdade essencial: a história da humanidade, de cada pessoa, não corre para uma meta sem saída e nem para um abismo escuro. É orientada para a glória do Senhor, como assinala o Papa Francisco no documento de convocação deste ano jubilar. Faz-se importante, pois, adentrar, sempre mais, nas ricas dimensões constitutivas da esperança que não confunde e não decepciona.

Redenção pelo amor, a chave para esperança de todo cristão

A esperança cristã tem uma fisionomia ampla e rica. Vivê-la proporciona um horizonte novo e luminoso. Mas o que se pode esperar? O Papa Bento XVI, na sua Carta Encíclica Spes Salvi – Salvos pela esperança – apresenta essa interrogação com uma resposta repleta de lições. Bento XVI lembra que progresso por adição só é possível no campo material, com processos de dominação da natureza. Nos campos da consciência ética e da decisão moral é diferente, pois a liberdade humana sempre se renova – não deve estar sujeita à dominação. Por isso mesmo, o bem-estar moral não é garantido somente pelas estruturas, por mais essenciais que sejam.

Precisa das decisões e das escolhas do conjunto de cidadãos, norteadas por um horizonte inspirador que se alimenta de uma esperança que não decepciona. A ciência contribui incontestavelmente para a humanização do mundo, mas não consegue redimir a interioridade do ser humano. Uma esperança fundada apenas na ciência é, pois, insuficiente. Não se redime a pessoa pela ciência, mas pelo amor, afirma o Papa Bento XVI. Experimentar na vida um grande amor é experienciar a redenção.

Jesus Cristo, o fundamento da esperança

Saiba-se que o fundamento da esperança que não decepciona é uma pessoa, tem um nome, Jesus Cristo, o Salvador. Ele é o único fundamento da esperança que não decepciona. A esperança fidedigna se alicerça na oferta do sacrifício e na ressurreição de Cristo. Ela é capaz de orientar a humanidade, pois Cristo possibilita uma compreensão que ilumina todo olhar com a luz da fraternidade, inspirando estilos de vida que ajudam a superar cenários de miséria e de exclusão, garantindo o respeito à dignidade de todos.


Não existe outro caminho para transformar a sociedade, partilhando as conquistas da ciência, qualificando a política, promovendo a vida. É preciso buscar a esperança que se fundamenta em Jesus. O ano jubilar permita a todos alcançar a sabedoria alicerçada em Cristo, qualificando cada ser humano para ser autêntico peregrino de esperança.

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/igreja/catequese/ancorados-na-esperanca-o-fundamento-para-todo-cristao/

31 de janeiro de 2025

Educar corações!

Cardeal Jaime Spengler
Presidente da CNBB

Há questões que caracterizam a existência humana, as quais cada geração é chamada a responder: Quem sou eu? Que sentido tem a vida? Qual a sua origem e seu objetivo? Qual a razão do existir? Qual sentido dar a tudo que experimentamos? O que buscamos? Qual o horizonte norteador das próprias escolhas, decisões e ações? Que lugar tem o outro na vida?

Numa sociedade líquida, caracterizada pela rapidez, o instantâneo e fugaz semelhantes questões são relegadas a segundo plano, em detrimento da própria saúde da sociedade. A violência e a brutalidade, em suas múltiplas expressões, requerem das melhores forças da sociedade uma introspecção honesta e profunda sobre o tipo de mundo em que vivemos, queremos viver e almejamos deixar para as próximas gerações.

Promover e aprofundar conhecimentos humanísticos, culturais e científicos se torna em tal contexto uma exigência. Urge identificar um núcleo de convergência, um horizonte de compreensão que ofereça sentido ao lugar onde o ser humano se encontra, ao seu empenho de viver a vida com suas possibilidades, desafios e ameaças.

A tradição ocidental caracterizou como núcleo de convergência do humano o 'coração'. É ele que, na fragilidade dos eventos transcorridos, percebe o esplendor de algo característico, permitindo-nos, por exemplo, não esquecer a graça de um olhar, a despretensiosa disponibilidade de uma mão estendida, a importância da presença amiga.

Lugar de destaque neste trabalho possuem as escolas e universidades, sem olvidar o que compete a instituição familiar. Os processos pedagógico-educacionais não podem estar focados somente na preparação de indivíduos para o mercado de trabalho. Decisivo é orientar e formar, com determinação e disciplina, para uma convivência social integrada e integradora, onde a dimensão do coração tem certamente lugar de destaque.

Isto implica "uma educação integral que não se limita à transmissão de conhecimentos, mas busca formar homens e mulheres capazes de compaixão e amor fraterno (…) Uma educação que prepara para o futuro, formando, além de profissionais competentes, adultos maduros que serão artesãos de um mundo mais belo e mais humano" (Papa Francisco).

Segundo artigo da série do cardeal Jaime Spengler em reflexão sobre a quarta encíclica do Papa Francisco "Dilexit nos", sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus Cristo.


Fonte: https://www.cnbb.org.br/educar-coracoes/

30 de janeiro de 2025

Jesus Cristo é a luz do mundo nos padres da Igreja

Dom Vital Corbellini
Bispo de Marabá (PA)



O evangelista São João coloca Jesus, luz do mundo, no debate com os judeus (cf. Jo 8,12). Ele veio até a realidade humana para nos revelar o amor infinito de Deus para com a humanidade, para nos libertar das trevas do pecado e levar-nos à comunhão com Deus. Nós somos chamados a viver a luz de Cristo em meio às ações boas, caritativas e problemáticas humanas, às mudanças climáticas, e a testemunhar as graças, os louvores a Deus Uno e Trino e à sua Igreja. O bom testemunho leva as pessoas ao contato com o Senhor, para a verdadeira luz, Jesus Cristo. Vejamos a seguir esta concepção nos santos padres, os primeiros escritores cristãos.
O significado da Luz, Jesus Cristo
Santo Ambrósio, bispo de Milão, no século IV disse ao público fiel, cristão de seu tempo, concepções essenciais sobre Jesus Cristo, como luz do mundo. O autor tinha presente a Palavra de Deus, que Jesus é o esplendor da glória do Pai (cf. Hb 1,3). Ele sendo Deus extrai a luz da luz (Jo 1,9). Ele veio do Pai, de modo que tudo o que o Filho tem é do Pai e tudo o que é do Pai é também do Filho. Jesus é a fonte da luminosidade, do brilho, dia que nunca termina.
O sol que ilumina
Santo Ambrósio também afirmou que Jesus é o verdadeiro sol, uma palavra profética presente em Malaquias (cf. Ml 3,20) que brilha com esplendor eterno. O Senhor é desde sempre junto com o Pai e com o Espírito Santo. Um pedido é feito do fundo do coração é para que Ele venha, infunda nos nossos corações e naqueles das pessoas da humanidade, a luz radiosa do Espírito Santo.
O dia seja na normalidade
Santo Ambrósio, pela oração dirigida ao Senhor pediu para que transcorra alegre o dia, na sua normalidade, que a modéstia seja como a luz do amanhecer. A pessoa faz o bem durante o dia de modo que o Senhor olhe para ela com fé com amor. A fé seja uma força para carregar com alegria os desafios diversos, o ânimo não conheça as trevas do pecado.
A aurora no seu caminho
Santo Ambrósio pediu ainda ao Senhor no seu hino de louvor ao Cristo como luz do mundo que a aurora prossiga no seu caminho, mostrando a luz que seguirá a aurora. O Filho está todo no Pai e todo o Pai está no Filho . É a unidade perfeita na qual o Filho conhece o Pai, o revela para o mundo e às criaturas, sobretudo ao ser humano. Ele é de fato a luz do mundo que brilha nas trevas, levando as pessoas e os povos à luz divina, à luz do Deus Uno e Trino.

A ação das pessoas cristãs
A Carta a Diogneto, escrito do século II colocou a ação das pessoas cristãs no mundo, por causa de seu seguimento a Jesus Cristo, como luz do mundo: "Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por sua língua ou costumes" . A Carta reforçou o dado que os cristãos não possuíam cidades próprias, nem tinham uma língua estranha, nem tinham algum modo especial de viver e de vida. A sua doutrina não dizia respeito à invenção própria, nem professavam algum ensinamento humano.
Os costumes do lugar e do estrangeiro
Os cristãos estando em cidades gregas e bárbaras, adaptavam-se aos costumes do lugar em relação à roupa, ao alimento, e testemunhavam um modo de vida social muito admirável . Na continuidade da vivência dos cristãos na forma de sua descrição, eram percebidos como pessoas que participavam de tudo mas sabendo que um dia passarão desta terra. "Vivem na sua pátria, mas como forasteiros: participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, e cada pátria é estrangeira" .
A vida familiar
O seguimento a Jesus, como luz do mundo apontou também à vida familiar, de todo o fiel que segue o Senhor. As pessoas casavam-se como todas e geravam filhos, filhas, de modo que não abandonavam os recém-nascidos . As autoridades romanas não aceitavam o abandono dos filhos nas praças. Muitos cristãos adotavam esses filhos e filhas para a convivência familiar, como forma de caridade. A carta também dizia que os cristãos estavam na carne, mas não viviam segundo a carne. Eles estavam na terra, mas carregavam a esperança de uma cidadania no céu.
As leis estabelecidas e as perseguições
A Carta a Diogneto tinha presentes que os cristãos obedeciam às leis estabelecidas, mas com os seus testemunhos ultrapassavam as leis. Eles amavam a todas as pessoas, e eram perseguidos, desconhecidos, mas sofriam condenações, eram mortos e tinham consciência de que eles receberão a vida. Eles eram pobres, mas enriqueciam a muitas pessoas, eram desprezados, mas eles tornavam-se glorificados, amaldiçoados, mas serão proclamados justos.
A importância da caridade
O Senhor colocou-nos como mandamento maior, o amor. "Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento". Esse é o maior e o primeiro mandamento!. Ora, o segundo lhe é semelhante: "Amarás teu próximo como a ti mesmo". Toda a Lei e os Profetas dependem desses dois mandamentos (Mt 22,37-40). São Leão Magno, bispo de Roma no século V teve presentes este mandamento aludindo à piedade e à caridade cristãs, em vista de ser verdade o amor a Deus e ao próximo como a si mesmo, e também à toda a humanidade, na qual nós temos em comum a natureza seja as pessoas amigas, seja as inimigas. O Bispo de Roma afirmou que o mesmo Criador que nos plasmou é o mesmo Redentor que nos deu a vida .
Jesus Cristo é a luz do mundo. Com Ele nós sigamos o caminho da verdade, da vida e do amor a Deus, ao próximo como a si mesmo. A missão nos leva a viver a luz do Senhor no mundo de hoje, marcado por violências, mortes, guerras, mas nós carregamos a esperança de um mundo melhor, mais fraterno, mais humano na unidade com o Senhor Jesus e à Igreja.

29 de janeiro de 2025

A contribuição de São Tomás de Aquino para o diálogo entre razão e fé

Relação equilibrada e harmônica entre razão e fé: um legado filosófico-teológico de Tomás de Aquino para a cultura ocidental

O pensamento de Tomás de Aquino é, em geral, caracterizado como genuinamente cristão, por trazer a mais íntima relação entre razão e fé, entre filosofia e teologia. O seu pensamento estaria inserido no contexto da formulação paradigmática, bem conhecida da filosofia como serva da teologia – philosophiae ancilla theologiae -, como era recorrente na medievalidade.

A busca pela harmonia entre razão e fé

Visões racionalistas e fideístas reconfiguradas, na contemporaneidade, trazem sinais equivocados, ainda persistentes, sobre a compreensão do real modelo tomista de distinção entre filosofia e teologia. No entanto, Tomás de Aquino buscou demarcar, com clareza meridiana, as rigorosas relações entre razão e fé. Uma demarcação fundamental para se entender bem os limites cognitivos da razão em relação à fé, evitando-se os exageros tanto do racionalismo, quanto do fideísmo, não raras vezes, nos tempos hodiernos, identificados em comunicações em diversos ambientes de divulgação de ideias filosóficas e teológicas.

O sistema tomista: a razão e os limites do conhecimento

O sistema tomista baseia-se na determinação rigorosa das relações entre razão e fé. É certo que a razão pode muito em termos de conhecimento, mas não pode tudo conhecer. Ela tem seus limites. Foi necessário que a razão se completasse com a fé, com aquilo que lhe é revelado. Entretanto, a revelação não anula nem torna inútil a razão, vale dizer, a graça não elimina a natureza, antes a aperfeiçoa – gratia non tollit naturam sed perficit.

A contribuição da razão para a fé

A razão não pode demonstrar o que pertence ao domínio da fé, porque a fé teria o seu conteúdo esvaziado. A razão não ultrapassa seus próprios limites, pois ela não atua de forma invasiva. Nesse sentido, Tomás de Aquino reconhece que a razão muito contribui para preparação da fé. Essa contribuição da razão para a fé se dá de três modos distintos.

A razão ajuda a demonstrar as verdades da fé

Em primeiro lugar, a razão ajuda a demonstrar aquelas coisas que podem ser consideradas como preâmbulos da fé, ou seja, aquelas verdades cuja demonstração é necessária à própria fé. Não se pode crer naquilo que foi revelado, se não se sabe que Deus existe. A razão demonstra que Deus existe e que possui características e atributos que podem ser inferidas das coisas por Ele criadas.

A razão ilustra as coisas que pertencem à fé por comparações

Em segundo lugar, a razão ilustra, por meio de certas semelhanças, as coisas que pertencem à fé, isto é, a razão pode ser utilizada para aclarar as verdades da fé mediante comparações.

A razão opõe-se as coisas que se o contrapõe a fé

Em terceiro lugar, a razão opõe-se às coisas que são ditas contra a fé, vale dizer, a razão pode rebater as objeções contra a fé, demonstrando que são falsas ou, ao menos, que elas não têm força demonstrativa (Aquino, 1990, p. 28).

Tomás de Aquino e a crítica aos averroístas

Na realidade, Tomás de Aquino tinha se posicionado contra os averroístas, a partir de interpretações enviesadas de Aristóteles. Os averroístas tinham esvaziado a fé de todo conteúdo racional e expunham a razão a uma angustiante crise de fé. E os averroístas latinos procuraram contornar a questão, recorrendo à teoria da dupla verdade, ou seja, é verdadeiro, mas de modo bem diverso, tanto o que ensina a razão quanto o que ensina a fé (Mondin, 1981, p. 171-172). Tomás de Aquino propunha correções aos averroístas. Os argumentos tomistas estavam assentados em três pontos fundamentais. Em primeiro lugar, razão e fé são sim modos distintos de conhecer, mas isso não conduz a uma dupla verdade. A razão admite a verdade por causa de sua evidência intrínseca, enquanto a fé aceita a verdade por causa da autoridade de Deus revelador (Aquino, 2009, p. 139). Em segundo lugar, razão e fé não podem contradizer-se. Deus é a fonte comum. Desse modo, a verdade da razão não pode jamais entrar em conflito com a verdade revelada, porque a verdade não pode contradizer a verdade. Se aparece uma oposição entre elas, é sinal de que não se trata propriamente da verdade, e sim de inferências errôneas, falsas em suas premissas e, por conseguinte, falsas em suas conclusões (Aquino, 1986, p. 115). E, em terceiro lugar, não obstante a razão seja suficiente para conhecer as verdades fundamentais da ordem natural e tenha sua autonomia no conhecimento das coisas naturais, ela é incapaz, por si só, de penetrar nas verdades mais profundas da ordem sobrenatural, que constituem seu bem último (Aquino, 1990, p. 31).

Os limites da razão e a demonstração da existência de Deus

O princípio aristotélico, segundo o qual todo conhecimento começa pelos sentidos, foi utilizado por Tomás de Aquino para limitar a capacidade e as pretensões da razão. A razão natural pode elevar-se até Deus, porém, seu ponto de partida são as coisas sensíveis, ou seja, é mediante a razão natural que o homem, através das criaturas, pode alcançar o conhecimento de Deus. Assim, afirma-se que "[…] as criaturas conduzem ao conhecimento de Deus, como o efeito conduz à causa." (Aquino, 2009, p. 555).

São Tomás de Aquino; Crédito: Bartolomé Esteban Murillo/Domínio Público

Os domínios da fé e da razão

São dois tipos de demonstrações possíveis à razão. Uma a priori ou propter quid, que parte da causa para o efeito; a outra, a posteriori ou quia, que parte do efeito para a causa. Na concepção tomista, somente a segunda via pode ser utilizada para o conhecimento de Deus. Esclarecidos os domínios da razão e da fé, Tomás de Aquino passou, então, a tratar dos correspondentes atos, entre eles, notadamente, o ato de fé. Era preciso entender o que é a fé. Para isso, ele aderiu a um conceito agostiniano, qual seja, cogitare cum assenso, quer dizer, pensar com anuência (Aquino, 2012, p.73).

O escolástico examinou esse conceito e o aprofundou, pois era necessário entender melhor o "pensar" que nele estava inserido. Ele envolve uma consideração indagadora do intelecto. O pensar, que é próprio da fé, é um ato intelectual que continua a indagar justamente porque ainda não se tem uma perfeição de algo que ainda está em cogitação. Assim, no pensar do crente estão envolvidas três espécies de operações intelectuais: duvidar, suspeitar e opinar. O duvidar consiste em não se inclinar nem para o sim nem para o não. O suspeitar já se caracteriza por se inclinar para um lado, mas sem deixar de ser movido por sinais apresentados pelo outro lado. O opinar se configura pela aderência a um lado, embora não desapareça o receio de que o lado contrário possa ser verdadeiro. Uma vez bem estabelecidas essa noção intelectual, então, deve ficar claro que o ato de crer se aproxima da adesão firme a um dos lados, a uma das partes, e aqui o ato de crer se assemelha ao que tem ciência, porque possui evidências de algo que já consegue conhecer. Entretanto, esse conhecimento do crente não é tão perfeito como daquele que tem uma evidência perfeita diante de si. O conhecimento do crente tende ao duvidar, ao suspeitar até chegar ao opinar, motivo pelo qual é próprio do crente pensar com anuência. Essa anuência implica que haverá inevitavelmente sempre uma escolha voluntária, o que inclina o homem para um lado e não para outro. Em última instância, a fé é uma adesão a um lado de alguma coisa, uma vez formada a opinião sobre ela. Por isso, baseado na Carta aos Hebreus, na concepção tomista, ela é "[…] a prova das coisas que não se veem." (Aquino, 2012, p.53).

A certeza da fé e a vontade

Para Tomás de Aquino, portanto, a certeza da fé está baseada na certeza da vontade, que acaba por aderir a uma opinião formada sobre algo. O ato de fé é mesmo um cogitar com assentimento, um pensar com anuência, sobre algo a que se decidiu aderir por opinião formada, sem que isso chegue a se tornar uma certeza objetiva, que fica reservada somente à ciência, porque a fé não é mobilizada por um objeto, mas sim por uma escolha voluntária.

Tomás Aquino buscou estabelecer rigorosas relações entre razão e fé, demarcando seus campos cognitivos e não contraditórios, de modo a se evitar os equívocos tanto do racionalismo, quanto do fideísmo, ainda persistentes, não raras vezes, nos tempos hodiernos. A razão se completa com a fé, com aquilo que lhe é revelado. A revelação, por sua vez, não anula nem torna inútil a razão, vale dizer, a graça aperfeiçoa a natureza, e não a anula. Para o escolástico, razão e fé têm modos distintos de conhecer, mas isso não conduz a uma dupla verdade; ao contrário, a fonte da verdade para a razão e para a fé é uma só, Deus. Razão e fé não podem contradizer-se, porquanto, Deus é a fonte comum da verdade que elas buscam conhecer.

A razão é suficiente para conhecer as verdades fundamentais da ordem natural e tem sua autonomia no conhecimento das coisas naturais, embora tenha limites próprios que a inviabilizem de penetrar nas verdades mais profundas da ordem sobrenatural, que constituem o bem último. A razão natural pode elevar-se até Deus, porém seu ponto de partida não é o próprio Deus, e sim as coisas sensíveis, isto é, do efeito conduz para a causa. São dois tipos de demonstrações possíveis à razão. Ela não segue a demonstração a priori ou propter quid, que parte da causa para o efeito, e sim a demonstração a posteriori ou quia, que parte do efeito para a causa.

O ato de fé: pensar com anuência

Depois de esclarecidos os domínios da razão e da fé, então, Tomás de Aquino colocou no epicentro do diálogo entre ambas o ato de fé. Este é entendido como pensar com anuência, o que envolve uma consideração indagadora do intelecto. O pensar, que é próprio da fé, é um ato intelectual que continua a indagar justamente porque ainda não há uma perfeição, já definida e definitiva, que caracterize o que se busca conhecer. Nesse pensar do crente há três operações intelectuais, quais sejam, duvidar, suspeitar e opinar.

I. Duvidar: cogitar a possibilidade do sim e do não para algo;
II. Suspeitar: tender para um lado, mas sem ignorar os sinais do outro lado;
III. Opinar: se caracteriza pela adesão a um lado, embora não desapareça o receio de que o lado contrário possa ser verdadeiro.

O ato de crer

O ato de crer requer adesão firme a um dos lados, a uma das partes, e, dessa maneira, ele se assemelha ao que tem ciência, porque possui evidências de algo que já consegue conhecer. Todavia, o conhecimento do crente não é tão perfeito como daquele que tem uma evidência perfeita diante de si. Por isso, o conhecimento do crente tende ao duvidar, ao suspeitar até chegar ao opinar, motivo pelo qual é próprio do crente pensar com anuência. No ato de fé, portanto, há sempre uma escolha voluntária, o que inclina o crente para um lado e não para outro. Por isso, em última instância, a fé é uma adesão a um lado de alguma coisa, uma vez formada a opinião sobre ela.

Assim, para Tomás de Aquino, a certeza da fé está baseada na certeza da vontade, que acaba por aderir a uma opinião formada sobre algo. O ato de fé é mesmo um cogitar com assentimento sobre algo a que se deliberou aderir por opinião formada, sem que isso chegue a se tornar uma certeza objetiva, que é reservada somente à ciência, porque a fé não é mobilizada por um objeto, mas sim por uma escolha voluntária.


O legado de Tomás de Aquino

A busca de uma relação equilibrada e harmônica entre razão e fé constitui, sem sombra de dúvida, um legado filosófico-teológico de Tomás de Aquino para a cultura ocidental. A propósito, são muito significativos os seguintes dizeres sobre a novidade perene do pensamento de São Tomás de Aquino:

[…] Tomás reconhece que a natureza, objeto próprio da filosofia, pode contribuir para a compreensão da revelação divina. A fé, então, não teme a razão, mas a procura e nela confia. Como a graça supõe a natureza e a leva a cumprimento, […], assim a fé supõe e aperfeiçoa a razão (João Paulo II, 1998, p. 92, tradução nossa).

Destarte, o pensamento tomista ainda constitui, nos tempos atuais, um ponto de equilíbrio coerente e consistente entre razão e fé, bem como um verdadeiro tesouro deixado pelo Doutor Angélico para as sociedades contemporâneas que, não raras vezes, se conduzem como massas arrebanhadas e manipuladas pelos movimentos pendulares dos racionalismos estéreis e dos fideísmos obscurantistas.

 

Marcius Tadeu Maciel Nahur
Natural de Lorena (SP), Coordenador do Curso de Filosofia da Faculdade Canção Nova. Formado em Direito, História e Filosofia. Mestrado em Direito com ênfase na Filosofia de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Delegado de Polícia Aposentado.


Referências

AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Tradução de Aldo Vannucchi et al. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2012. v. V. 682 p.

AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Tradução de Aldo Vannucchi et al. São Paulo: Loyola, 2009. v. I. 693 p.

AQUINO, Tomás de. Suma contra os gentios. Tradução de D. Odilão Moura O.S.B. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia; Universidade de Caxias do Sul; e, Livraria Sulina Editora, 1990. v. V. 376 p.

AQUINO, Tomás de. Exposición del De Trinitate de Boecio. Traducción de Alfonso García Marqués. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 1986. 302 p.

JOÃO PAULO II. Fides et Ratio: i rapporti tra fe e ragione. Casale Monferrato: PIEMME, 1998. 168 p.

LIBERA, Alain de. A Filosofía Medieval. Tradução de Nicolás Nyimi Campanário e Yvone Maria de Campos Teixeira da Silva. São Paulo: Loyola, 1998. 532 p.

MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Tradução de Bênoni Lemos. 9. ed. São Paulo: Paulus, 1981. v. 1. 227 p.


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/igreja/contribuicao-de-sao-tomas-de-aquino-para-o-dialogo-entre-razao-e-fe/

27 de janeiro de 2025

Jubileu da Esperança, o caminho para uma nova realidade

Ano Jubilar 2025, uma jornada de esperança para o mundo

A Igreja Católica convida o mundo a celebrar o Ano Jubilar 2025, experiência que pode alimentar a luz da esperança, para fazer de todos peregrinos de esperança. Um investimento humano e espiritual para enfrentar desesperanças causadas pela escuridão que paira no céu do mundo contemporâneo, agravada pelas guerras, disputas de todo tipo que pesam sobre os ombros de todos.

Jubileu da Esperança, o caminho para uma nova realidade

Igor Alecsander / GettyImages

O caminho jubilar tem propostas celebrativas e dinâmicas vivenciais capazes de resgatar o ser humano com a luz da esperança que reveste o viver de um profundo e adequado sentido, iluminando horizontes que inspiram a edificação de uma nova realidade, aguardada por todos.

Caminho espiritual, a fonte para a reconciliação

Na multíplice riqueza do horizonte humanístico e espiritual da Igreja, seja destacada a orientação para que cada pessoa reconheça que o ser humano tem sede do amor de Deus, conforme bem ensina o Papa Francisco, no 4º capítulo da Carta Encíclica sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus. Deus foi o primeiro a amar. O princípio fundante do amor de Deus, assim, vincula a humanidade ao compromisso de amar sempre, até mesmo os inimigos.

Um compromisso capaz de instituir nova lógica humanística, com força para corrigir descompassos nas relações humanas. A sede do amor de Deus cura descompassos de outras "sedes", a exemplo da ilimitada ambição pelo poder, que tanto fere a dignidade humana. Há de se admitir sobre a necessidade de um caminho espiritual que é fonte de reconciliação e de amizade social, inspirando ainda um novo estilo de vida, mais respeitoso com a casa comum.

Sede inesgotável, encontrando plenitude no amor de Deus

A sede de Deus direciona o ser humano para um manancial inesgotável e encantador, detalhado na promessa de Deus ao seu povo. A qualidade do amor divino, com propriedades únicas, devolve e garante à humanidade uma existência plena, muitas vezes procurada em outros lugares ou referências. Quando se busca conquistar uma existência plena em outras referências, desconsiderando o amor de Deus, convive-se com um vazio existencial que compromete a vida.

Deus é vivificante, oferece ao mundo uma sabedoria que ilumina o caminhar de cada dia. Por isso os cristãos contemplam um homem trespassado de onde brota, do seu lado aberto, no alto da cruz, a água da benevolência e da súplica, fazendo emergir a garantia de vida nova. A vida nova nasce e fecunda-se pela experiência de fixar o próprio olhar no crucificado e focalizar bem o seu lado aberto, ferido pela lança do soldado. Acolher a voz de Cristo – com aquela palavra por Ele proferida, solenemente, na Festa das Tendas, no dia mais solene, em Jerusalém, conforme narra o Evangelista João: "Se alguém tem sede, venha a mim… hão de correr do seu coração rios de água viva". Compreende-se o especialíssimo poder da cruz de Cristo para saciar a sede de Deus. Contemplá-la é uma experiência capaz de inspirar grandes e inesperadas mudanças no coração humano.

Buscando a renovação espiritual através da contemplação do crucificado

Contemplar o crucificado é reconhecer o amor de Deus sempre declarado à humanidade. Um amor eterno, com propriedades para entrelaçar corações e vidas, para fazer vencer, sempre, a misericórdia. Ao longo da história, tornou-se cada vez mais sólida a devoção da Igreja ao Sagrado Coração de Jesus – fonte permanente de vida para quem o ama. A fé cristã encontra aí um caminho para dessedentar-se no amor de Deus, desdobrando-se em uma força espiritual transformadora, que arquiteta condutas de mártires, de evangelizadores, de vidas vividas segundo a lógica do amor fraterno e solidário.


Reconhecer a sede de Deus e saciá-la a partir do Sagrado Coração de Jesus possibilita a experiência de um renascimento, alcançando o sentido existencial do viver, alicerce da coragem e da arte essenciais para trilhar os caminhos da vida. Uma força transformadora que brota do amor e muito ajuda na cura das doenças atuais. Do coração de Cristo vem a plenitude do Espírito Santo que não permite distanciamento do amor de Deus.

O silêncio do coração, a sabedoria e a intimidade com Jesus

Jesus, com o seu coração, destrói o espírito maligno que tenta dominar e adoecer cada pessoa. A sede de Deus precisa, pois, ser reconhecida e cultivada, de modo especial pela devoção ao coração de Jesus, lugar de encontro pessoal com o Senhor – assim já ensinava Santo Agostinho, no século 4. Do encontro com o Senhor nasce uma sabedoria, uma intimidade mística, cultivada no silêncio e na contemplação, fortalecendo o ser humano.

Vale o convite para entrar no coração do Mestre, particularmente pela escuta e acolhida das interpelações de sua Palavra, alimento para a alma que se desdobra em uma sabedoria essencial ao caminho de cada dia. A partir da proximidade com o coração de Jesus, o coração humano qualifica-se para viver o amor que incide sobre o conjunto da própria vida, qualificando-a, enriquecendo – a com a força de um amor maior e inesgotável – o amor de Deus, a água que cura a principal sede do ser humano.

A dinâmica do amor, uma jornada de expansão e compreensão

É preciso alimentar o desejo de se encontrar com Deus, na oração pessoal e comunitária. Assim o coração humano bate em sintonia com o coração de Cristo, enchendo-se de uma ternura que cura, humaniza e qualifica. Este é, pois, convite deste Ano Jubilar que busca reunir peregrinos de esperança, dedicados à vivência do amor, nas mais diferentes circunstâncias da vida, ajudando a sociedade a tornar-se justa e solidária. Aproximar-se do Coração de Jesus é inscrever-se em uma dinâmica que inspira transformação pessoal, ampliando horizontes de compreensão.

Permite reconhecer, por exemplo, que o próprio trabalho não se restringe ao exercício de uma profissão ou de um
empreendimento, mas caminho para construir uma sociedade melhor. Todos possam trilhar um caminho novo a partir do cultivo da sede do amor de Deus.

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/igreja/jubileu-2025/jubileu-da-esperanca-o-caminho-para-uma-nova-realidade/

25 de janeiro de 2025

Você sabe lidar com a tristeza?

Dom Leomar Brustolin
Arcebispo de Santa Maria (RS)

 

Jesus é Deus que se fez humano para revelar nossa verdadeira identidade.  Aos contemplarmos a humanidade de Jesus, vemos a "transparência" do rosto de Deus. Seus traços humanos – sua história concreta, suas escolhas, seus comportamentos e seus sentimentos – nos permitem acessar quem é o homem Jesus, seu lado humano. Ao mesmo tempo, revelam o projeto de ser humano que Ele nos ofereceu.  Os primeiros cristãos sempre refletiram sobre Jesus como "o rosto divino do humano e rosto humano de Deus".

Refletir sobre os sentimentos de Jesus pode iluminar nossas próprias experiências, frequentemente marcadas por incertezas e cansaços. Não temos como imitar Jesus em tudo, porque os contextos são diversos, mas podemos nos inspirar em sua vida ele para lidarmos com os revezes do nosso cotidiano. Como bem diz o Pe. Zezinho em sua canção: "O que é preciso para ser feliz? Amar como Jesus amou, viver como Jesus viveu, sonhar como Jesus sonhou, sentir o que Jesus sentia".

Meditemos sobre a tristeza, esse sentimento que marca nossa existência e que foi santificado pela vivência de Jesus. Muitas vezes, ela pode nos paralisar ou lavar à depressão, tirando nossa vontade de viver. Porém, nem toda a tristeza é ruim.  Ficar triste, por exemplo, por estar longe de Deus, por ter feito algo errado ou por ter ofendido alguém e se arrepender, tem grande valor. São Paulo escreveu: "A tristeza, segundo Deus, produz um arrependimento irrevogável que leva à salvação, enquanto a tristeza mundana traz a morte" (2 Cor 7, 10).

A tristeza saudável pode conter valiosas lições: reconhecer o que já não temos, mas que nos fazia felizes; tomar consciência dos nossos defeitos, aprendendo a discernir o bem do mal; a sermos humildes, percebendo o que nos falta na vida e, ao mesmo tempo, abrir-nos para encontros inesperados, chamando-nos a sair da autossuficiência.

Jesus experimentou sentiu tristeza ao longo de sua vida. Ele se entristeceu diante do pecado da "dureza de coração" dos seus interlocutores, especialmente dos líderes religiosos que o rejeitavam. Experimentou a tristeza profunda no Jardim das Oliveiras antes ser preso, julgado e condenado (Mc 14,33). Ele superou esse momento entregando-se totalmente à vontade do Pai (Mc 14,36), encontrando na paixão iminente uma lógica de amor a Deus e ao próximo.

Com Jesus, aprendemos que, quando o amor se torna a razão de viver e de morrer, a tristeza dá lugar à felicidade e à alegria profunda, que são dons do Espírito Santo. Ele nos ensina a lidar com a tristeza sem nos perdermos em meio às trevas.

Jesus também manifestou sua vulnerabilidade com lágrimas. Ele chorou pela morte de seu amigo Lázaro: "Jesus começou a chorar", e os presentes comentaram: "Vejam como ele o amava!" (Jo 11,35-36).  Chorou também ao avistar Jerusalém, após sua entrada triunfal messiânica, lamentando que a Cidade Santa não reconheceu o momento da sua visita. Ele veio trazer a paz, mas foi rejeitado e crucificado como um malfeitor (Lc 19,41-44).

Jesus disse "Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados" (Mt 5,4) e "Bem-aventurados vocês que agora choram, porque vocês se alegrarão" (Lucas 6,21).  Choramos de tristeza, pelo sofrimento injusto, pelos nossos pecados. Não são lágrimas inúteis. Elas são recolhidas por Deus, que no Reino, porá fim à morte e a tudo o que contradiz a vida em plenitude, com um gesto muito simples e cheio de amor: Ele mesmo enxugará as lágrimas de todos os rostos (cf. Ap 21,4).

É preciso aprender a sofrer sem perder a esperança. Afinal até a dor e a tristeza passam, mas Deus permanece conosco. Em Cristo, Deus experimentou a tristeza e nos indicou o caminho da superação pela fé. Deus é fonte da alegria e está sempre conosco.


Fonte: https://www.cnbb.org.br/voce-sabe-lidar-com-a-tristeza/