Certa vez, ao passar por uma praça onde havia crianças brincando, vi duas delas lutando entre si, ferreamente, por um brinquedo. Pareciam dois soldadinhos competindo em cabo de guerra. Um arrastava o brinquedo para um lado; o outro, na direção contrária. Logo, um deles deu um puxão, o outro quase caiu, mas resistiu. Como resultado da peleja, uma das mãos de um deles começou a sangrar, mas ele não largou o brinquedo. Por fim, ambos começaram a chorar e a gritar. Daí para frente receberam a assistência de adultos.
Enquanto passava por ali, observando a cena, vi que havia outros brinquedos à disposição dos meninos, mas, de algum modo, naquele momento, só aquele da disputa lhes servia.
Segui pensando nas vezes em que adultos, quando querem obcecadamente coisas ou pessoas para si, mas não conseguem obtê-las, desestabilizam-se e se tornam crianças. Pensei também nas feridas psicoemocionais advindas destes fatos; e como sempre vêm com sangramentos invisíveis destilando de ínfimas gotas a milhões de toneladas de tristeza e infelicidade.
Quase saindo daquela praça, pensei: "Que bom se a gente aprendesse a perder o que deve ser perdido! Quantos sofrimentos, tristezas e infelicidades seriam evitados?! Aquilo que devemos perder, quando os seguramos, nos ferem muito!"
Presenciei aquela cena dos meninos há mais de quarenta anos, mas ela nunca saiu da minha lembrança e sempre que retenho algo e isso me fere, eu a revejo como se estivesse ocorrendo agora. Com estas lembranças, costumo sorrir silenciosamente e dizer para meu eu criança: "Tenha cuidado! Não me faça sofrer! Solte!"
Por vezes, meu eu criança me obedece e solta o que devo perder; noutras, simplesmente não me ouve. Por isso tentei entender algumas razões pelas quais, mesmo sofrendo, mesmo contra toda lógica racional, mesmo vendo que tudo vai ser ruim, meu eu criança simplesmente não consegue perder o que deve ser perdido. E nesta busca por entendimento, encontrei muitas razões disfarçadas, dissimuladas, tentando se esconderem de mim, mas todas elas se resumem em uma só: apego. Na verdade, elas criam o apego, o alimentam, o fortalecem e o mantêm.
Tudo piora quando o apego é sustentado por dependência psicoemocioal.
A seguir, partilharei algumas experiências. Talvez elas sirvam para ajudar as irmãs e os irmãos a encontrarem seus traumas e apegos ocultos ou disfarçados; mas, antes, devo partilhar as seguintes notas:
✓ este é um assunto tão complexo quanto é cada ser humano;
✓ o que serve para uma pessoa, pode não servir para outra;
✓ como o ser humano é em si um microcosmo, o assunto pode ser inesgotável;
✓ enfim, o texto está se limitando a ser somente uma partilha de experiências.
Então, eis uma pergunta cuja resposta, se for certeira, vale a felicidade: se o apego ao que se deve perder, causa sofrimento, por que as pessoas se apegam ao que não deveria?
Por minha experiência, assim como pela prática de oração por outras pessoas ― já pertenci ao antigo ministério de cura interior da RCCGOIÂNIA, quando ele existia ― os apegos se ligam a necessidades reais ou fictícias, criadas por si ou sugeridas por outros. Nisso, incluem sonhos e idealizações criadas pela própria pessoa ou por outras. As outras pessoas, todas elas ― parentes, amigos, colegas, desconhecidos, artistas, comunicadores ― também podem semear sonhos, desejos, vontades em alguém. E, em verdade, não importa de onde vêm os sonhos, as idealizações, os desejos, pois quando alguém os assume como algo próprio, mas não consegue realizar o que deseja, poderá optar por um, entre dois caminhos: renunciar ou se apegar; e quando se apega, tal apego pode se tornar dependência psicoemocional.
Dependências psicoemocionais são correntes escravizantes que prendem a pessoa ao objeto dos seus desejos. Creio que uma pessoa psicoemocionalmente dependente de algo que não se realiza, ou de alguém que não lhe demonstra amor, não consegue ser feliz.
O apego pode ser a qualquer pessoa ou coisa material ou imaterial, assim como a dependência psicoemocional também pode.
Exemplificarei com dois casos acompanhados por mim, ainda no ano de 1987.
No primeiro deles, um irmão, já idoso, com alguns filhos e netos, durante uma oração para cura interior partilhou uma tristeza que carregava consigo há mais de quarenta anos. Ele disse que para se livrar da dor que sentia, pensava muitas vezes em morrer.
Em resumo, quando ele tinha vinte anos, namorava uma moça por quem era muito apaixonado, a ponto de pensar em se tornar noivo. Contudo, para sua infelicidade, a viu dando trela para o seu irmão. Evidentemente, ele passou a observá-los, até que num domingo, após um almoço em família, ao chegar em determinado local, teve a impressão de que eles estariam se desvencilhando apressadamente de algo que seria um beijo.
Ele a confrontou, ela negou; ele o confrontou, ele negou..., mas um dos seus primos confirmou que havia algo. Ele terminou o namoro, mas não conseguiu se livrar da dor. Assim, ele chegou àquela oração de cura interior, mais de quatro décadas depois do trauma.
Durante a oração, ele compreendeu que sofria por estar preso à noção de honra que havia herdado da sua família. Assim, ao lembrar de que fora traído por sua namorada e seu irmão, ele sofria e sentia muita vergonha por ter sido traído.
Em determinado momento, eu lhe perguntei como ele se sentia ao ouvir a palavra "corno", mas ele não conseguiu responder, pois começou a perder os sentidos e a vomitar sem nada sair do seu estômago.
Quando ele melhorou, lhe perguntei o que ele mais queria naquela ora, e ele respondeu: "Tudo o que eu queria, para não me sentir um completo idiota, era que minha namorada e meu irmão reconhecessem seus erros e me pedissem perdão, mas eles negaram e me deixaram com cara de trouxa. Como não reconheceram e não me pediram perdão, além de ser tido como o corno da família, passei a ser o idiota que não se vingou, o homem que não é homem. Mas como eu poderia me vingar? Eu pensava em meus pais. Foi por causa deles que não me vinguei!"
Oramos para que ele conseguisse renunciar ao apego à noção de honra que assumira como sua e ao desejo de que seu irmão e sua ex-namorada reconhecessem que o haviam traído e lhe pedissem perdão.
No fim, ele estava muito aliviado e já sorria de verdade. Antes de despedi-lo, passei-lhe o contato de uma ótima psicóloga que eu conhecia e de um psicanalista.
Ele se foi como alguém que havia se livrado de uma tortura.
O segundo caso foi de uma senhora que tinha em torno de quarenta anos. No início da oração, ela partilhou sobre uma grande dificuldade de relacionamento. Depois de orar e ouvi-la, a causa foi se esclarecendo, pois ela tratava como adversária, e às vezes como inimigas, a todas as pessoas que a contrariavam ou negavam-lhe algo. Eram pessoas que a faziam se sentir perdedora. Ela reconheceu isso, mas não entendia o porquê.
Depois de mais algum tempo, minha parceira de oração lhe pediu para falar sobre a perda mais dolorosa de sua vida. Ao ouvir o pedido, ela se empalideceu e começou a chorar. Quando conseguiu falar, disse que aos sete anos de idade, seu avô, então muito rico, faliu. Ele faliu no mês do seu aniversário, quando lhe havia prometido um belo presente: uma viagem ao exterior.
Com seu avô empobrecido, tudo mudou para pior: seus pais e seus tios tiveram que trabalhar como empregados para outros empresários, tiveram que se mudar para casas pobres, não conseguiram manter os carros; ela, seus irmãos e seus primos foram estudar em escolas públicas.
Oramos com ela, mas, naquele dia, ela não conseguiu renunciar ao apego à vida confortável que poderia ter usufruído. Pedimos-lhe que consultasse algum psicoterapeuta, e, se desejasse, voltasse a nos procurar.
Depois de alguns meses, ela voltou para agradecer e receber oração. Ela disse que, na terapia, descobriu que não conseguia se desapegar da frustração por não ter recebido seu presente de aniversário. Ela ainda o queria, e muito, mesmo já tendo passado trinta anos. Segundo seu terapeuta, era o trauma que segurava o apego e a fazia dependente emocional de um fato que não se realizou e jamais se realizaria.
Pelo que foi partilhado até aqui, penso que os irmãos e as irmãs já compreenderam que é possível aprender a perder e que sabedoria, discernimento e perseverança ajudam muito nisso, assim como orações e psicoterapias; porém, a título de um pouco de esclarecimento, eis abaixo o resumo de um "método" que pode ser útil a quem desejar, de fato, aprender e praticar a ARTE DE SABER PERDER o que deve ser perdido:
✓ oração;
✓ decisão no sentido de optar por perder (renunciar) ao que deve ser perdido;
✓ oração;
✓ autoanálise;
✓ oração;
✓ terapia com profissional;
✓ oração.
Evidentemente, um tema riquíssimo de detalhes e tão complexo como o ser humano, seu objeto científico, mereceria pelo menos um tratado interdisciplinar fundamentado em ciências como Teologia, Psicologia e Psicanálise, por isso encerro a partilha dizendo que o ambiente no qual vivemos pode se tornar agradável quando conseguimos melhorar a nós mesmos.
Muito obrigado!
Até outro texto!
Afetuosamente, Deus te abençoa!
Dercides Pires da Silva.
Goiânia-GO, 28 de julho de 2024.