6 de agosto de 2024

Subindo o monte com Jesus: a experiência do Céu na Terra

Testemunhando a Glória Divina: A Transfiguração de Jesus

Festa da Transfiguração do Senhor é uma festa que, segundo a tradição, ocorreu 40 dias antes da Crucificação,  logo, por consequência, 40 dias depois, 14 de setembro, ocorre a festa da Exaltação da Santa Cruz.  

Conforme o evangelho lido na festa da Transfiguração(Mc 9,2-10), Jesus toma Pedro, Tiago e João consigo para  subir ao monte. Leva esses 3 apóstolos pois, conforme São Tomás de Aquino diz, essas escolhas tinham  explicação:  

  •  Pedro, era o discípulo que mais amava Jesus  
  •  João, era o discípulo que Jesus mais amava  
  •  Tiago, porque em Mt 20,22, junto com o irmão, disse que beberia do mesmo cálice que Nosso Senhor,  Jesus  

Um vislumbre da glória celestial

Jesus mostra a esses escolhidos o que é um corpo glorificado, que um dia eles terão, ao estrarem no Céu.  Aquele momento então era uma experiência do Céu. Não à toa, conforme a leitura, Pedro diz: "É bom ficarmos  aqui" (Mc 9,5). Devia estar muito bom mesmo pois, não somente Jesus estava com eles, mas também Moisés,  representando a lei, e Elias, representando os profetas.  

"A transfiguração de Cisto" – Créditos: Peter Paul Rubens/Domínio Público

Vestígios do Céu

De tal forma foi a transfiguração que até suas vestes ficaram brilhantes e brancas, a tal ponto que, diz a  Palavra, nenhuma lavadeira poderia deixar em tal brancura. Isso demonstra ainda que, no Céu, não se permite  sujeira alguma, nem nas vestes celestiais. Somente santos entram no Céu. Não basta ser salvo, precisa ser  santo.  

A presença de Jesus é suficiente

Pedro, com o ímpeto que já lhe era peculiar, diz ainda que desejava fazer 3 tendas para Jesus, Moisés e Elias.  Esqueceu-se até de tendas para ele e os outros 2 apóstolos. Importava somente estar com Jesus, Elias e  Moisés naquela experiência de Céu que viviam. Fica claro aqui que estar com Jesus já é o suficiente para nós.  Não precisamos de mais nada. Se você está valorizando outras coisas, além de Jesus, dando valor a outras  questões, que não seja Jesus, saiba que essa ordem não é a correta e precisa ser reavaliada. Jesus precisa ser  o suficiente em sua vida. Precisa ter o 1º lugar em sua vida.  

 

Um segredo divino

Chama atenção ainda que o Jesus que conheciam vivia como nós, tinha fome, sede, chorava, mas, nesse  momento, Jesus se mostra por inteiro. Mostra toda a sua Glória, e só mostra a esses 3 apóstolos. Eles viram  algo tão tremendo que, ao descerem da montanha, Jesus diz a eles que não deveriam contar a ninguém.  

A voz do Pai

Para dar maior clareza da experiência de Céu que estavam vivendo, uma nuvem desce sobre eles e uma voz diz  "Este é meu Filho amado. Escutai o que ele diz" (Mc 9,7). Sim, o Pai vem novamente, da mesma forma que no  batismo de Jesus, quando também chama Jesus de Filho Amado. Essa manifestação de Deus vem para selar  esse grande momento.  

O chamado à Transfiguração hoje

Na festa da Transfiguração de 2021, Papa Francisco disse: "A festa da Transfiguração do Senhor nos recorda  que somos chamados a experimentar o encontro com Cristo". Com isso, podemos entender que, no dia de  hoje, Jesus está chamando a mim e a você para subir o monte com Ele para rezar. Para nos afastarmos do  mundo por um tempo e ficar somente com Nosso Deus e rezar. Ter uma experiência do Céu. Lá, que é o meu e  seu lugar.  

Que tal? Pedro, Tiago e João subiram ao monte. E você? Qual será sua resposta? Vamos subir com Jesus o  monte? 

 

Junior Alves – Missionário da comunidade Canção Nova,  Graduado em Ciência da Computação(UFRJ) e Mestre em Administração de Empresas(PUC/RJ) 


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/liturgia/festa-da-transfiguracao-experiencia-de-fe/

5 de agosto de 2024

Sacerdote, ministro revestido de dignidade

A missão sublime do sacerdote: ponte entre o céu e a terra

O padre, com olhar carregado de compaixão e fé, abraça uma vocação que encontra seu propósito no altar, na palavra divina que busca conforto e na comunidade que serve. A verdadeira extensão do amor! 

Agosto, mês de celebrar o sacerdócio

No mês de agosto, celebramos o Dia do Padre, aquele escolhido por Deus para ser Seu ministro e, portanto, revestido de dignidade. É pelo sacerdote, que empresta a Cristo todo o seu corpo e o seu ser, que temos acesso à Misericórdia do Pai do Céu pelo sacramento da confissão, adoramos ao Senhor na Eucaristia e obtemos a unção dos enfermos. Foi Ele quem ministrou o sacramento do batismo em nós, estava lá em nosso casamento abençoando as alianças.

O chamado para a vocação sacerdotal

Créditos: Wesley Almeida/Arquivo cancaonova.com

Construindo pontes entre o Céu e a Terra

Cada Missa celebrada, cada sacramento administrado, cada palavra de consolo oferecida são tijolos que constroem uma ponte entre o Céu e a Terra, um farol de esperança para os corações e um testemunho silencioso da graça divina que o escolheu para guiar Seu rebanho.

O chamado, a entrega e a renúncia

Esse chamado veio de Deus, e quantas coisas ele passou para chegar até aqui e dar-se por inteiro em sua missão! As poucas horas para estudar e nos formar na doutrina católica, sem deixar de lado a sua vida de oração, o seu sustento nessa jornada.

Ele é pastor e tem por ofício levar suas ovelhas rumo a Deus nessa entrega total em meio a alegrias e tristezas, as quais fazem parte da arte humana de viver nessa existência.

Rumo à santidade em conformidade com Cristo

O sacerdote, por assim dizer, é convocado a uma vida de renúncia e, muitas vezes, de coisas valiosas e real grandeza, pois ele foi enviado em vista da caridade e da santidade, que não vêm em segundo plano ou de um patamar mais baixo; é uma luta constante rumo à conformidade a Cristo, correspondendo à graça divina.

A grandeza do chamado ministerial: a identidade de Cristo

É lindo saber que, nesse chamado ministerial, há uma grandeza insuperável neste mundo, pois está em sua identidade, a de Jesus Cristo. Não quero que diminua a reverência que se deve professar pelos sacerdotes, porque a reverência e o respeito que se lhes manifesta, não se dirige a eles, mas a Mim, em virtude do Sangue que lhes dei para que o administrasse. (Santa Catarina de Sena, O Diálogo, cap. 116; Cfr. Ps CIV, 15).

Rezemos pelos sacerdotes, guiados por Maria

Rezemos pelos padres, peçamos a Virgem Maria que volte aos trilhos aqueles filhos prediletos que necessitam de sua ajuda maternal. Cabe a nós não fazer julgamentos, pois isso cabe ao próprio Deus que os chamou. Rezemos, rezemos por esses pastores de Deus que nos levam diariamente o Cristo Vivo para ser nosso alimento.

Maria, Mãe da Eucaristia

Quem pode, melhor do que Maria, fazer-nos saborear a grandeza do mistério eucarístico? Ninguém pode, como ela, ensinar-nos com quanto fervor devemos celebrar os santos mistérios e deter-nos em companhia do Seu Filho escondido sob as espécies eucarísticas. Por isso, a ela, recordo a todos, entrego especialmente os mais idosos, os doentes, quantos se encontram em dificuldade. Nesta Páscoa do Ano da Eucaristia, apraz-me fazer ressoar para cada um de vós a doce e reconfortante declaração de Jesus: "Eis a tua Mãe" (Jo 19, 27). (Carta do Santo Padre João Paulo II Aos sacerdotes por ocasião da Quinta-feira Santa de2005).

 

Micheline Teixeira – Missionária da Comunidade Canção Nova, Graduada em Administração com complemento dos estudos em Marketing. Atualmente, cursa pós-graduação em Logoterapia. É diretora, produtora e jornalista no Portal Canção Nova.


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/vocacao/sacerdote-ministro-revestido-de-dignidade/

31 de julho de 2024

A oração é a base da vida espiritual

Embora a vida espiritual seja dom de Deus e os sacramentos sejam os verdadeiros motores que a criam e sustentam, a oração, ou o ato de rezar, é o combustível que alimenta o crescimento da espiritualidade. Dito de outra forma bem explícita: não existe vida espiritual sem oração.

Ela é a maneira como cada um se coloca, conscientemente, sob os cuidados de Deus, procurando conhecê-Lo e se tornar conhecido por Ele, procurando entender e fazer a vontade d'Ele.

Não é um erro menor se esquecer de rezar e não procurar conhecer como a oração aumenta nossa intimidade com Deus. Se, no céu, estaremos em plena união com o Altíssimo, o que seria mais importante no mundo do que conhecer, treinar e aprofundar-se nessa intimidade?

Santa Teresa D'Ávila define a oração como um trato de amizade com Deus. Isso porque, com os nossos grandes amigos, trocamos confidências, falamos dos nossos pensamentos mais íntimos, nossas angústias e sonhos. Somos livres para nos expor sem medo de sermos julgados.

Créditos: Kamonwan Wankaew por GettyImages/cancaonova.com

A oração, vida da alma

Esse é um detalhe valioso da oração: ela nos ajuda a ordenar nosso interior, nossa inteligência e vontade a partir de uma perspectiva do alto e da eternidade.

Exponho-me e, enquanto me exponho, também me analiso e percebo as mentiras que conto para mim mesmo, os erros e desvios do caminho, a minha falta de atenção com as coisas mais importantes da vida.

Rezar nos ajuda a construir em nós esse caminho de aperfeiçoamento que não é para mostrar para os outros, não é para se gabar, mas para que estejamos mais próximos do Criador e de Sua vontade.

Orações vocais

E se não existem pré-requisitos para a oração , por que não iniciar logo?

As chamadas orações vocais são acessíveis a todos. Este é o formato mais simples de oração. Ela se dá quando falamos com Deus, daí o nome vocal. E podemos falar com Deus usando nossas próprias palavras ou repetindo uma oração tradicional como a Ave-Maria ou o Pai-Nosso.

Não é necessário mover os lábios. Se conversamos com Deus ou usamos uma oração decorada dentro de nossa cabeça, sem que ninguém ouça nada, isso já é uma oração vocal, pois se usam palavras.


Cuidados na oração vocal

Mas cuidado: o problema de repetir orações decoradas é o automatismo. E não existe verdadeira oração ou verdadeiro cristianismo no piloto automático, como ir à missa por puro hábito, rezar porque "é hora" ou "está acostumado", sem uma verdadeira corrente interior, prejudicando a vida espiritual.

Sem querer, começamos a viver o que vivíamos, o farisaísmo, tão combatido por Jesus nos Evangelhos: por fora, sepulcros bonitos e pintados, gente que reza sem parar; por dentro, somente podridão, pois a oração não está conectada com o coração (Mt 23,27).

Então, se nos dispomos a rezar, é necessário fazermos com verdadeira atenção: com sentido, sabendo o que se está falando, sabendo com Quem está falando. Atenção e piedade são, portanto, fundamentais.

Santa Teresa Ávila e São Tomás de Aquino

A mesma Santa Teresa, doutora da Igreja, deixa bem claro que, quando falamos ou repetimos fórmulas prontas sem prestar atenção com quem falamos, do que falamos e sem estarmos com nosso coração e mente envolvidos no que fazemos, não estamos rezando.

Esse repetir palavras sem consciência não é oração para a Santa de Ávila. A oração verdadeira só se dá quando nossa inteligência e vontade estão unidas com atenção, com reverência e amor em um relacionamento com Deus. O resto é mover os lábios, não é ministro falar com Deus. 

Mas que fique bem claro para todos: não há problema em repetir Pais-Nossos, Ave-Marias ou quaisquer outras orações, desde que se esteja atento ao que se está fazendo, ou seja, sua mente e seu coração estejam envolvidos no processo. A verdadeira oração é diálogo, não enxurrada de palavras perdidas e desatentas (Mt 6,6).

São Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica, fez um exame detalhado de todas as características da oração e do ato de rezar com verdadeiros frutos, cumprindo os conselhos evangélicos.

Afinal, rezar sem cessar, interceder por nossos inimigos e, inclusive, realizar súplicas e pedidos a Deus, é interceder para nossa própria salvação e bem.

Para aqueles que desejam crescer em oração e se aprofundar nesse conhecimento, recomendo o livro "A Oração segundo os doutores da Igreja". Com certeza, a vida de oração vai adquirir um novo significado aos seus olhos.

No próximo artigo, trataremos sobre a oração mística ou contemplação, um passo além na vida de oração.


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/espiritualidade/vida-de-oracao/a-oracao-e-a-base-da-vida-espiritual/

30 de julho de 2024

A importância da virtude da esperança em tempos difíceis

A esperança em tempos difíceis

O Catecismo da Igreja Católica inicia as reflexões sob as virtudes teologais afirmando: "As virtudes teologais fundamentam, animam e caracterizam o agir moral do cristão, informam e vivificam todas as virtudes morais" (CIC 1813).

Nunca se fez tão necessário conhecer, desejar e pedir a Deus as virtudes da fé, esperança e caridade como nos tempos atuais, onde muitos são os acontecimentos que nos desanimam e nos fazem duvidar se Deus ainda olha pela humanidade. Confesso que, entre as virtudes teologais, a que sempre se destaca em minha busca nos estudos é a virtude da esperança, sem dúvida nenhuma, graças à influência de São João Paulo II, que, em todo o seu pontificado, foi um entusiasta de tal virtude, e é o meu santo de devoção.

A virtude da esperança

O que é a virtude da esperança?

CIC 1817. A esperança é a virtude teologal pela qual desejamos o Reino dos céus e a vida eterna como nossa felicidade, pondo toda a nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos, não nas nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo. "Conservemos firmemente a esperança que professamos, pois Aquele que fez a promessa é fiel" (Hb 10, 23). "O Espírito Santo, que Ele derramou abundantemente sobre nós, por meio de Jesus Cristo nosso Salvador, para que, justificados pela sua graça, nos tornemos, em esperança, herdeiros da vida eterna" (Tt 3,6-7).

Se você deseja ser santo e viver a sua vida cultivando a fé e o amor por onde passar, até chegar no céu, é preciso, antes de tudo, desejar e pedir a Deus a virtude da esperança, que caminha junto com o desejo pelo reino dos céus.

Pare e pense, agora, antes de continuar essa leitura: como anda, em seu interior, a esperança e o desejo pela eternidade?

Se for possível, peça a Deus, agora mesmo: "Desperta, Senhor, em meu coração, a esperança que não decepciona, como nos ensina São Paulo em Romanos 5,5".


A esperança em ação segundo Bento XVI

Bento XVI dedica toda uma encíclica à esperança, a Spe Salvi. Descreve-a como uma virtude performativa, capaz de "produzir fatos e mudar a vida". Na sua encíclica escreve: "A redenção é-nos oferecida no sentido que nos foi dada a esperança, uma esperança fidedigna, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo presente: o presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceite se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meta, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho" (Spe Salvi).

Esperança frente ao medo

Em seu discurso na sede da ONU, em 1995, o Papa João Paulo II nos deixou essa herança espiritual no combate ao medo que, muitas vezes, aprisiona e paralisa:

A esperança não é um otimismo, ditado pela confiança ingênua de que o futuro é necessariamente melhor que o passado. Esperança e confiança são a premissa de uma atuação responsável e têm o seu apoio no íntimo santuário da consciência, onde o ser humano está a sós com Deus, e por isso mesmo intui que não está só entre os enigmas da existência, porque está acompanhado pelo amor do Criador (Discurso à ONU, 5.10.1995).

Reacendendo a chama da esperança

No livro 'Liberdade interior', padre Tiago Felipe ensina que é graças à virtude da esperança que, todos os dias pela manhã, podemos recomeçar e nos decidirmos a amar.

Pela fé que transporta montanhas e o amor que tudo pode superar, recorra, hoje mesmo, a crescer pela graça de Deus na busca diária para colocar em prática o sentido da sua esperança que não está enraizada nas coisas que passam, mas na eternidade.

A esperança nunca decepciona (Romanos 5,5)

Saulo Macena – Missionário da Comunidade Canção Nova desde 2009. Morou por seis anos na missão Canção Nova na França. Saulo é natural da cidade de Fortaleza (CE). Casado, ele é pai de uma filha. Graduando Teologia no Centro Universitário Internacional (Uninter) com especialização em teologia da história e comunicação salesiana.


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/espiritualidade/a-importancia-da-virtude-da-esperanca-em-tempos-dificeis/

29 de julho de 2024

A Arte de Saber Perder



Certa vez, ao passar por uma praça onde havia crianças brincando, vi duas delas lutando entre si, ferreamente, por um brinquedo. Pareciam dois soldadinhos competindo em cabo de guerra. Um arrastava o brinquedo para um lado; o outro, na direção contrária. Logo, um deles deu um puxão, o outro quase caiu, mas resistiu. Como resultado da peleja, uma das mãos de um deles começou a sangrar, mas ele não largou o brinquedo. Por fim, ambos começaram a chorar e a gritar. Daí para frente receberam a assistência de adultos.
Enquanto passava por ali, observando a cena, vi que havia outros brinquedos à disposição dos meninos, mas, de algum modo, naquele momento, só aquele da disputa lhes servia.
Segui pensando nas vezes em que adultos, quando querem obcecadamente coisas ou pessoas para si, mas não conseguem obtê-las, desestabilizam-se e se tornam crianças. Pensei também nas feridas psicoemocionais advindas destes fatos; e como sempre vêm com sangramentos invisíveis destilando de ínfimas gotas a milhões de toneladas de tristeza e infelicidade.
Quase saindo daquela praça, pensei: "Que bom se a gente aprendesse a perder o que deve ser perdido! Quantos sofrimentos, tristezas e infelicidades seriam evitados?! Aquilo que devemos perder, quando os seguramos, nos ferem muito!"
Presenciei aquela cena dos meninos há mais de quarenta anos, mas ela nunca saiu da minha lembrança e sempre que retenho algo e isso me fere, eu a revejo como se estivesse ocorrendo agora. Com estas lembranças, costumo sorrir silenciosamente e dizer para meu eu criança: "Tenha cuidado! Não me faça sofrer! Solte!"
Por vezes, meu eu criança me obedece e solta o que devo perder; noutras, simplesmente não me ouve. Por isso tentei entender algumas razões pelas quais, mesmo sofrendo, mesmo contra toda lógica racional, mesmo vendo que tudo vai ser ruim, meu eu criança simplesmente não consegue perder o que deve ser perdido. E nesta busca por entendimento, encontrei muitas razões disfarçadas, dissimuladas, tentando se esconderem de mim, mas todas elas se resumem em uma só: apego. Na verdade, elas criam o apego, o alimentam, o fortalecem e o mantêm.
Tudo piora quando o apego é sustentado por dependência psicoemocioal.
A seguir, partilharei algumas experiências. Talvez elas sirvam para ajudar as irmãs e os irmãos a encontrarem seus traumas e apegos ocultos ou disfarçados; mas, antes, devo partilhar as seguintes notas:
✓ este é um assunto tão complexo quanto é cada ser humano;
✓ o que serve para uma pessoa, pode não servir para outra;
✓ como o ser humano é em si um microcosmo, o assunto pode ser inesgotável;
✓ enfim, o texto está se limitando a ser somente uma partilha de experiências.
Então, eis uma pergunta cuja resposta, se for certeira, vale a felicidade: se o apego ao que se deve perder, causa sofrimento, por que as pessoas se apegam ao que não deveria?
Por minha experiência, assim como pela prática de oração por outras pessoas ― já pertenci ao antigo ministério de cura interior da RCCGOIÂNIA, quando ele existia ― os apegos se ligam a necessidades reais ou fictícias, criadas por si ou sugeridas por outros. Nisso, incluem sonhos e idealizações criadas pela própria pessoa ou por outras. As outras pessoas, todas elas ― parentes, amigos, colegas, desconhecidos, artistas, comunicadores ― também podem semear sonhos, desejos, vontades em alguém. E, em verdade, não importa de onde vêm os sonhos, as idealizações, os desejos, pois quando alguém os assume como algo próprio, mas não consegue realizar o que deseja, poderá optar por um, entre dois caminhos: renunciar ou se apegar; e quando se apega, tal apego pode se tornar dependência psicoemocional.
Dependências psicoemocionais são correntes escravizantes que prendem a pessoa ao objeto dos seus desejos. Creio que uma pessoa psicoemocionalmente dependente de algo que não se realiza, ou de alguém que não lhe demonstra amor, não consegue ser feliz.
O apego pode ser a qualquer pessoa ou coisa material ou imaterial, assim como a dependência psicoemocional também pode.
Exemplificarei com dois casos acompanhados por mim, ainda no ano de 1987.
No primeiro deles, um irmão, já idoso, com alguns filhos e netos, durante uma oração para cura interior partilhou uma tristeza que carregava consigo há mais de quarenta anos. Ele disse que para se livrar da dor que sentia, pensava muitas vezes em morrer.
Em resumo, quando ele tinha vinte anos, namorava uma moça por quem era muito apaixonado, a ponto de pensar em se tornar noivo. Contudo, para sua infelicidade, a viu dando trela para o seu irmão. Evidentemente, ele passou a observá-los, até que num domingo, após um almoço em família, ao chegar em determinado local, teve a impressão de que eles estariam se desvencilhando apressadamente de algo que seria um beijo.
Ele a confrontou, ela negou; ele o confrontou, ele negou..., mas um dos seus primos confirmou que havia algo. Ele terminou o namoro, mas não conseguiu se livrar da dor. Assim, ele chegou àquela oração de cura interior, mais de quatro décadas depois do trauma.
Durante a oração, ele compreendeu que sofria por estar preso à noção de honra que havia herdado da sua família. Assim, ao lembrar de que fora traído por sua namorada e seu irmão, ele sofria e sentia muita vergonha por ter sido traído.
Em determinado momento, eu lhe perguntei como ele se sentia ao ouvir a palavra "corno", mas ele não conseguiu responder, pois começou a perder os sentidos e a vomitar sem nada sair do seu estômago.
Quando ele melhorou, lhe perguntei o que ele mais queria naquela ora, e ele respondeu: "Tudo o que eu queria, para não me sentir um completo idiota, era que minha namorada e meu irmão reconhecessem seus erros e me pedissem perdão, mas eles negaram e me deixaram com cara de trouxa. Como não reconheceram e não me pediram perdão, além de ser tido como o corno da família, passei a ser o idiota que não se vingou, o homem que não é homem. Mas como eu poderia me vingar? Eu pensava em meus pais. Foi por causa deles que não me vinguei!"
Oramos para que ele conseguisse renunciar ao apego à noção de honra que assumira como sua e ao desejo de que seu irmão e sua ex-namorada reconhecessem que o haviam traído e lhe pedissem perdão.
No fim, ele estava muito aliviado e já sorria de verdade. Antes de despedi-lo, passei-lhe o contato de uma ótima psicóloga que eu conhecia e de um psicanalista.
Ele se foi como alguém que havia se livrado de uma tortura.
O segundo caso foi de uma senhora que tinha em torno de quarenta anos. No início da oração, ela partilhou sobre uma grande dificuldade de relacionamento. Depois de orar e ouvi-la, a causa foi se esclarecendo, pois ela tratava como adversária, e às vezes como inimigas, a todas as pessoas que a contrariavam ou negavam-lhe algo. Eram pessoas que a faziam se sentir perdedora. Ela reconheceu isso, mas não entendia o porquê.
Depois de mais algum tempo, minha parceira de oração lhe pediu para falar sobre a perda mais dolorosa de sua vida. Ao ouvir o pedido, ela se empalideceu e começou a chorar. Quando conseguiu falar, disse que aos sete anos de idade, seu avô, então muito rico, faliu. Ele faliu no mês do seu aniversário, quando lhe havia prometido um belo presente: uma viagem ao exterior.
Com seu avô empobrecido, tudo mudou para pior: seus pais e seus tios tiveram que trabalhar como empregados para outros empresários, tiveram que se mudar para casas pobres, não conseguiram manter os carros; ela, seus irmãos e seus primos foram estudar em escolas públicas.
Oramos com ela, mas, naquele dia, ela não conseguiu renunciar ao apego à vida confortável que poderia ter usufruído. Pedimos-lhe que consultasse algum psicoterapeuta, e, se desejasse, voltasse a nos procurar.
Depois de alguns meses, ela voltou para agradecer e receber oração. Ela disse que, na terapia, descobriu que não conseguia se desapegar da frustração por não ter recebido seu presente de aniversário. Ela ainda o queria, e muito, mesmo já tendo passado trinta anos. Segundo seu terapeuta, era o trauma que segurava o apego e a fazia dependente emocional de um fato que não se realizou e jamais se realizaria.
Pelo que foi partilhado até aqui, penso que os irmãos e as irmãs já compreenderam que é possível aprender a perder e que sabedoria, discernimento e perseverança ajudam muito nisso, assim como orações e psicoterapias; porém, a título de um pouco de esclarecimento, eis abaixo o resumo de um "método" que pode ser útil a quem desejar, de fato, aprender e praticar a ARTE DE SABER PERDER o que deve ser perdido:
✓ oração;
✓ decisão no sentido de optar por perder (renunciar) ao que deve ser perdido;
✓ oração;
✓ autoanálise;
✓ oração;
✓ terapia com profissional;
✓ oração.
Evidentemente, um tema riquíssimo de detalhes e tão complexo como o ser humano, seu objeto científico, mereceria pelo menos um tratado interdisciplinar fundamentado em ciências como Teologia, Psicologia e Psicanálise, por isso encerro a partilha dizendo que o ambiente no qual vivemos pode se tornar agradável quando conseguimos melhorar a nós mesmos.
Muito obrigado!
Até outro texto!
Afetuosamente, Deus te abençoa!

Dercides Pires da Silva.
Goiânia-GO, 28 de julho de 2024.


Gramática do coração

A indiferença: um risco real na sociedade contemporânea

No coração humano, hospedam-se indiferenças que precisam ser adequadamente tratadas sob o risco de inesperada e elevada cobrança a se pagar pela displicência. A atenção focada apenas em estratégias políticas, econômicas e outras questões da vida humana contemporânea, não pode transcurar o que o coração de cada pessoa inscreve na sua gramática. São perigosas as reações que podem nascer das indiferenças, surpreendendo esquemas rígidos de segurança e comprometendo vidas, projetos e processos importantes. O dito sapiencial, de relevância espiritual de Jesus, na sua maestria, no Sermão da Montanha, conta muito e guarda preciosa advertência e indicação de zelo: 'Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração'.

Créditos: miodrag ignjatovic / GettyImagens

O tesouro do coração

O tesouro de cada um é o forro do seu coração, funcionando como luz do corpo. Jesus sublinha: 'A lâmpada do corpo é o olho: se teu olho for bom, ficarás todo cheio de luz, mas se teu olho for mau, ficarás todo em trevas. Ora, se a luz em ti é trevas, quão densas serão essas trevas'. A força deste ensinamento e advertência ilumina a preocupação que se deve ter de qualificar o tecido do próprio coração para o exercício da solidariedade e incondicional respeito à dignidade de cada pessoa. E, assim, também priorizar e efetivar um novo estilo de vida na casa comum, por meio de mudanças e procedimentos que consigam tratar de modo diferente o meio ambiente. Por isso, é um perigo se descuidar do fenômeno das indiferenças que tomam conta dos corações enjaulados na mesquinhez e no desgosto, impedindo gestos e atitudes pela paz e nobreza no relacionamento humano. 

O combate à indiferença: compaixão e solidariedade

Importa, pois, operar verificações sobre as diferentes fisionomias da indiferença em relação ao próximo. São muitos os dramas que afligem a humanidade, sendo urgente tocar os corações, não permitindo que o risco real de se ter muitas informações, trazidas pelas facilidades fascinantes dos meios e tecnologias atuais, impeça que sejam cultivadas a sensibilidade e a espiritualidade para mudar, urgentemente, circunstâncias ameaçadoras na vida comum. O combate à indiferença precisa ser alavancado pelo indispensável sentimento de compaixão, sem o olhar que permite alcançar o outro, particularmente o pobre e vulnerável, mantendo-se na estreiteza de lógicas que não adotam o perdão e a reconciliação. Tem-se muitas e variadas informações sem que, no entanto, seja produzida uma luminosa consciência solidária. Pode-se constatar uma certa anestesia da sensibilidade, convencendo corações a escolhas e a posturas que levam a consequências prejudiciais, inclusive para a própria pessoa, afetando o conjunto e a interioridade da precisada sociedade solidária. Justifica-se, facilmente, tudo, distribuindo, rancorosamente, o rol de culpas, apontando, falaciosamente, os pobres como responsáveis primeiros, justificando encastelamentos que perpetuam ódios e fechamentos às partilhas e urgente reconciliação. 

A necessidade da escuta e da corresponsabilidade

Essa realidade é como mortal câncer social que justifica e permite a corrupção, a formação hermética de oligarquias, alimentando ideologias políticas perversas e destrutivas. Aí estão raízes evidentes do comprometimento da paz mundial, nas instituições e nas famílias. Tudo nasce no risco de não sentir compaixão pela humanidade sofredora. Na contramão, urge-se exercitar-se na escuta do grito surdo vindo das angústias que afligem a humanidade, pedindo e indicando a importância terapêutica de interessar-se e ocupar-se com o que pesa sobre os ombros dos outros, corresponsabilizando-se por soluções e contribuindo por atitudes solidárias e compassivas, não se pautando em mágoas, ressentimentos e na mesquinhez do próprio conforto. É evidente o risco do conforto amordaçar o coração, impedindo-o de gestos de altruísmo e o privando de sabedorias que impulsionem comprometimentos e intuições na tarefa cidadã de edificar uma sociedade mais justa e solidária. Compreende-se, neste mesmo horizonte, a incompetência social e política de tratar a casa comum a partir de um outro estilo de vida, matando-a, assim, e pagando preços altos por reações da natureza, que levam a penúrias e à escassez, a exemplo da água e dos alimentos. 

A fraternidade: um valor inegociável

Um coração indiferente é naturalmente fechado e desinteressado. É urgente o investimento para sair de um sentimento de indiferença para um coração misericordioso. Coração misericordioso por considerar o outro sempre como irmão, sem trair a fraternidade, de nenhum modo e em nenhuma circunstância. Não se pode deixar valer a síndrome de Caim para com Abel, iluminados sempre pela verdade de igual dignidade, todos à imagem e semelhança de Deus. Quando a fraternidade é quebrada, em qualquer nível ou intensidade, paga-se de muitos modos, hoje ou amanhã um alto preço. Há um chamamento à responsabilidade para com o outro, sem preconceitos e discriminações. 'Onde está o teu irmão?', interrogação central no episódio Caim e Abel, deve ecoar fortemente no coração de cada pessoa como dispositivo gerador de indispensável sensibilidade solidária e fraterna. É indispensável, pois, como Deus se interessa, interessar-se pelo destino do outro, não como ingerência, mas como solidariedade que qualifica relacionamentos, muda rumos e reorganiza a sociedade em outros possíveis parâmetros de convivência.

O bem comum como prioridade

Há de se aprender, como remédio, a ser misericordioso como forro de qualidade do próprio coração, para não se tornar o indivíduo grande por feitos e projetos, mas apequenado por omitir-se na solidariedade e no empenho político de edificação da sociedade nos trilhos da justiça solidária. É preciso adotar a solidariedade com o firme e perseverante empenho pelo bem comum, aprendizagem prioritária e exercício diário, em ensinamentos formais e em práticas cotidianas, fazendo valer o princípio cristão que considera o outro sempre o mais importante, derrubando os muros do orgulho, a mesquinhez do ressentimento, seduzidos todos pela galhardia da nobreza de cada gesto, por ela alargando horizontes, apontando novos rumos e encontrando soluções. 

A solidariedade como caminho

Inscrever a solidariedade na gramática do coração é adotar um programa de vida que faz do amor e da compaixão os trilhos do próprio caminhar. Valha, e seja acolhido, o precioso convite de se ser fomentador da cultura da solidariedade e da misericórdia como combate efetivo da perniciosa e daninha indiferença. A gramática do coração é a solidariedade adotada como virtude moral e comportamento social, um caminho que pode, passo a passo, reacender luzes de esperança no horizonte nebuloso da sociedade contemporânea.     

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/atualidade/sociedade/gramatica-do-coracao-indiferenca-compaixao-solidariedade/

26 de julho de 2024

A virtude da fortaleza exige decisão, coragem, generosidade e constância

Iniciamos os comentários da terceira virtude cardeal dessa série

Essa virtude, que se chama força de alma, força de caráter ou virilidade cristã é uma virtude moral, sobrenatural, que robustece a alma na conquista do bem árduo sem se deixar abalar pelo medo nem sequer pelo temor da morte.

O seu objeto é trabalhar especificamente na constância e na firmeza de prática do bem, transformar o temor em audácia e força contra a temeridade e a tibieza.

Créditos: sdominick / GettyImagens

Os seus atos se reduzem a dois princípios: empreender e tolerar coisas difíceis. Permanecer firme contra os obstáculos que, constantemente, surgem no caminho da perfeição. Não os temer e avançar contra eles exige decisão, coragem, generosidade e constância. É preciso também saber tolerar, por Deus, as numerosas e árduas provações que Ele nos envia, os sofrimentos, as doenças e zombarias, as calúnias de que somos vítimas. Quem aguenta costuma ser mais forte do que quem ataca.

Graus da virtude da fortaleza

Primeiramente, é preciso lutar, corajosamente, contra os diversos temores que se opõem ao cumprimento do dever, o temor da fadiga e perigo. Todos os bens celestes devem nos ser preferíveis aos bens terrenos. Donde é preciso sacrificar generosamente as fortunas, a saúde, a reputação e a vida em troca da graça! Portanto, o pecado deve ser evitado a todo custo, mesmo que todos os males temporais desabem sobre nós.

O temor das críticas e zombarias ou o respeito humano nos levam a descuidar do nosso dever por medo dos juízos desfavoráveis que se farão de nós, das ameaças contra nós, das injúrias e injustiças de que seremos vítimas.

O temor de desagradar aos amigos seria uma vã popularidade. A aprovação de Deus deve ser maior que a aprovação dos homens.

Mais para frente, é preciso procurar exercitar a parte positiva da virtude da fortaleza, esmerando-se por imitar a força de alma de que Jesus Cristo nos deu exemplo durante a vida.


Virtude que vai além das aparências

Essa virtude aparece na sua vida oculta: abraça a pobreza, a mortificação e a obediência no exílio, ficando em silêncio por trinta anos, ensinando-nos a santificar as ações mais ordinárias e de nos inspirar o amor da humildade.

Na sua vida pública: nos longos jejuns, nas vitórias constantes contra o demônio, na sua pregação firme contra os preconceitos judaicos, no sacrifício e abnegação, nas denúncias contra os doutores da lei, por fugir da popularidade, na formação dos apóstolos, na decisão de subir para Jerusalém sabendo do sofrimento e dor, humilhação e morte.

Na Sua Paixão: na agonia dolorosa, onde ainda ora pelos seus inimigos, na serenidade, silêncio diante das injustiças e nos julgamentos, na paciência durante os suplícios e as zombarias. Na serena expiação onde se entrega nas mãos do Pai. Uma
paciência imperturbável nas mais duras provações.

Aqui, há o suficiente para muita meditação. Modelos para nos fazer viver seu exemplo nas menores situações de nossa vida.

Existe, assim como nas demais virtudes cardeais já comentadas, virtudes anexas à da fortaleza, que a detalham e a compõem. As veremos nos próximos artigos, assim como também os meios de os aperfeiçoar. Permaneça conosco e atente-se às publicações.

Equipe Formação Canção Nova


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/series/virtudes-morais-cardeais/a-virtude-da-fortaleza-exige-decisao-coragem-generosidade-e-constancia/