27 de setembro de 2021

Como podemos nos aproximar da Palavra de Deus?


Conta-se que o Imperador alemão Frederico II (+ 1250) quis saber qual era a primeira língua do mundo, aquela que Adão e Eva utilizavam no jardim do Éden. Como acreditava que todas as línguas são aprendidas por imitação, escolheu doze recém-nascidos para que fossem criados isoladamente, sem que ninguém lhes dirigisse uma palavra sequer.

Desse modo, segundo o Imperador, se ninguém falasse com eles, não poderiam aprender a língua dos seus cuidadores, e o idioma "original" brotaria espontaneamente de seus lábios. Assim se fez. Os bebês eram cuidados, mas ninguém podia dirigir alguma palavra próximo a eles. O resultado foi que, gradativamente, os bebês foram morrendo um a um. Por quê? Porque lhes faltou a palavra.

Dar a palavra a alguém significa entrar em contato com essa pessoa, criar vínculos, fazer com que o outro participe de nossa própria interioridade.

Como podemos nos aproximar da Palavra de Deus?

Foto Ilustrativa: Wesley Almeida/cancaonova.com

A Palavra de Deus nos permite conhecer a intimidade da vida divina

Quando uma pessoa fica ferida por outra, costuma negar a essa a sua palavra, e, embora esta não seja uma atitude cristã, pois o perdão que o Senhor pede que manifestemos nos leva a não excluir a ninguém do nosso amor, tal gesto nos indica o peso que há no "dar a palavra".

Quando alguém nos pede que creiamos no que diz, costuma afirmar que "dá sua palavra".

Essas breves considerações antropológicas nos ajudam a perceber o modo como Deus escolheu agir entre nós. Ele nos deu Sua Palavra. Cristo é a Palavra que se fez carne e habitou entre nós. Sua Palavra permite que conheçamos a intimidade da vida divina, cria vínculo com quem A recebe. Ele "deu Sua Palavra", para que acreditássemos que Ele é a verdade, para que participássemos de sua vida. Deus, com toda a força que implica este verbo, entregou Sua Palavra por nós até o extremo.


Aprofundar-se na Palavra de Deus

Vivemos num mundo em que a palavra praticamente não tem valor. Estão em toda parte: nas "timelines" frenéticas de nossas redes sociais, nos anúncios publicitários, nos abundantes discursos dos políticos, dos "profissionais da fé" e daqueles que procuram oferecer uma solução mágica para toda espécie de problemas. São tantas palavras, que terminamos praticamente por desprezá-las, pensando: "não são mais que palavras".

Um grande risco para nós seria permitir que esse clima de desvalorização da palavra permeasse a nossa relação com a Palavra feita carne. O acostumar-se com a Palavra de Deus, o pensar que já a conhecemos suficientemente, impediria a abertura necessária para que Ele possa comunicar-se conosco. Seríamos como aqueles bebês da lenda, que morreram; neste caso, não por não ouvirmos uma palavra, mas por nos tornarmos impermeáveis a ela.

Estamos diante de uma Palavra que, embora próxima, não pode ser costumeira. Nossa atitude diante dela deve ser a mesma de Moisés no Horeb. Tirar as sandálias dos pés, sandálias empoeiradas pela rotina, para aproximarmo-nos com a expectativa de receber a eterna novidade de Deus.



Padre Demétrio Gomes

Padre Demétrio Gomes é Pároco Vigário Judicial do Tribunal Eclesiástico Interdiocesano de Niterói, e Chanceler do Arcebispado de Niterói. Professor do Instituto Filosófico e Teológico do Seminário São José de Niterói. Membro da Sociedade Internacional Tomás de Aquino (SITA – Brasil), do Centro Dom Vital e da Sociedade Brasileira de Canonistas (SBC). Administrador do website Presbíteros http://www.presbiteros.com.br para a formação do clero católico.


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/espiritualidade/vida-de-oracao/como-nos-aproximarmos-da-palavra-de-deus/


24 de setembro de 2021

Bíblia, fonte de espiritualidade


É muito relevante que, em diversas passagens bíblicas, o próprio conteúdo das escrituras é tomado como fonte e direcionamento para a vida espiritual e os acontecimentos. Jesus, ao se encontrar com os discípulos de Emaús, explicou para eles as Escrituras. Isso quer dizer que, além de recordá-los do que os textos diziam, mostrou que possuíam um sentido mais profundo para aqueles que conseguiam enxergá-los espiritualmente.

O próprio Pedro, ao se dirigir ao Sinédrio, utiliza o texto Sagrado (Sl 117,22) para explicar o sentido dos acontecimentos: "a pedra que os construtores rejeitaram se tornou pedra angular" (At 4,11).

Deste modo, acontecimentos históricos, narrativas, orações e diálogos se entrelaçam compondo um grande tecido, ao mesmo tempo simbólico e real, figurativo e literal. A Palavra de Deus passa a ser "viva e eficaz, mais penetrante que uma espada de dois gumes" (Hb 4,12). É o Verbo Divino, é uma Pessoa. Seu objetivo? Santificação e salvação.

Como já vimos em outro artigo, o propósito das Sagradas Escrituras é mostrar o caminho da restauração do homem, isto é, sua santificação. Na quase totalidade das passagens dos Evangelhos, o sentido moral, aquele que conduz a uma mudança de vida e busca das virtudes, é bem evidente.

O homem não pode viver apegado ao dinheiro (Mt 6,24), a vida espiritual é necessária (Mt 4,4), é preciso perdoar sempre (Mt 18,21-22), o interior é muito mais importante do que o exterior (Mc 7,15), etc. Mas, em outros livros bíblicos, principalmente do Antigo Testamento, os sentidos espirituais não são tão evidentes, mesmo o sentido moral.

Bíblia, fonte de espiritualidade

Foto ilustrativa: Arquivo CN

A Bíblia é um grande compêndio da vida espiritual

Isso quer dizer que a Bíblia é um grande compêndio da vida espiritual, com orientações sobre todas as fases do desenvolvimento da espiritualidade. Claro, como já analisamos, esse conteúdo é submerso na alegoria e simbologia e só é revelado, por ação do Espírito Santo, à medida que o fiel se santifica, tornando-se um outro Cristo. Desta forma, a Bíblia alimenta a espiritualidade que, por sua vez, promove novos entendimentos da própria Palavra de Deus, tornando o processo vivo e dinâmico.

Os santos padres dos primeiros séculos entenderam como ninguém esta dinâmica e desenvolveram explicações não só para os diversos trechos das Escrituras mas, como vimos no artigo anterior , para livros inteiros da Bíblia. No exemplo citado, o Livro de Rute é a história da Alma dócil à vontade de Deus e que busca se unir com o seu senhor, o Cristo.

Isso é o que se passa com os chamados Livros Sapienciais: Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos Cânticos. Eles são lidos e entendidos como três fases diferentes e consecutivas da vida espiritual.

O Livro dos Provérbios e a Vida Purgativa

O início da vida espiritual é também chamado de primeira via (caminho) ou via purgativa. É o momento de se purgar (limpar, purificar) dos pecados, dos vícios, dos sentimentos e atitudes que nos afastam de Deus. Na linguagem de São Paulo, é o momento de acabar com o homem velho para que o homem novo, aquele restaurado pelo batismo em Cristo possa se desenvolver.

Que guia melhor para esse processo de conversão pessoal que o Livro dos Provérbios? Utilizando-se de sentenças diretas, com foco orientativo e moral, esse livro promove uma verdadeira correção de vida "para conhecer a sabedoria e a instrução, para compreender as palavras sensatas, para adquirir as lições do bom senso, da justiça, da equidade e da retidão; para dar aos simples o discernimento, ao adolescente a ciência e a reflexão" (Pr 1, 2-4).

Fica a sugestão: se você nunca leu o Livro dos Provérbios, leia e medite cada sentença. O início da vida espiritual não é o momento de se ocupar com sentidos espirituais profundos, é a hora de corrigir os comportamentos e adquirir as virtudes através dos ensinamentos morais. E, que fique claro, o "início" da vida espiritual não é medido cronologicamente. Se você ainda luta para se desvencilhar dos pecados mortais diariamente, vive um eterno "cai e levanta", tentando adquirir firmeza nos Sacramentos, não importa quantas décadas você está próximo da Igreja Católica. Isso é o início da vida espiritual.

O Eclesiastes e a Vida Iluminativa

Logo após o Livro dos Provérbios, encontramos o Eclesiastes. Outro livro sapiencial ou poético que pode ser entendido como sequência espiritual do livro anterior.

O Eclesiastes está ligado à segunda fase da Vida Espiritual, também chamada de Via Iluminativa. É o momento do verdadeiro discipulado de Cristo. Se, na Via Purgativa, o principal foco é viver plenamente os mandamentos de Deus e adquirir as virtudes básicas da paciência e da temperança, a Via Iluminativa é o momento de se assumir e colocar em prática os conselhos evangélicos. Aqueles que Jesus deu aprofundando a lei e os profetas através dos quatro evangelistas e que lembramos alguns deles no quinto parágrafo deste artigo.

Mas, se formos falar da essência do Eclesiastes, poderíamos resumi-lo em "tudo [que não se refere a Deus ou a vida espiritual] é vaidade" (Ecl 1,2). Ele possui uma linguagem poética mais profunda que os Provérbios. Afinal, não é um livro para se ensinar o que fazer, mas como se posicionar perante o mundo. Não é como "fazer", mas como "ser".

Também por isso essa segunda parte da vida espiritual é chamada de Iluminativa. A luz precisa entrar e revelar todas as coisas… revelar os caminhos a seguir, revelar o que estava escondido e precisa ser corrigido. O Livro dos Eclesiastes é perfeito para aqueles que estão neste momento de se aprofundar no seguimento a Cristo! Vencida a luta constante e sem tréguas contra o pecado mortal, apaziguadas as paixões e tendências aos vícios, vem a grande, constante e ininterrupta permanência em Cristo (Jo 15,4). Saímos do campo da negação, entramos na afirmação. E todos sabem que construir demora muito mais que demolir.

O auge do amor no Cântico dos Cânticos

O terceiro livro poético ou sapiencial é o Cântico dos Cânticos. Seus simbolismos e a profundidade de seus sentidos espirituais escandalizaram e continuam escandalizando a todos aqueles que só conseguem fazer uma leitura superficial e literal da Bíblia.

Mas, não se trata de um livro erótico ou com sugestões indecentes. Ele é a explicação das fases que envolvem a terceira e mais alta fase da Vida Espiritual: a Via Unitiva. Limpo dos pecados e paixões, orientado sobre a verdadeira permanência em Cristo, chegou o momento de se unir em plenitude com o Cristo (Jo 17,21).


Não se engane, não é uma leitura para principiantes. Sua densidade só pode ser comparada ao Apocalipse de São João. Mas, para vermos a profundidade dos seus sentidos espirituais, vamos citar um exemplo de uma das linguagens que causam escândalo e incompreensão: O noivo, apaixonado, chama sua amada de "minha irmã, minha noiva!" (Ct 4, 9-10).

As Sagadas Escrituras são um caminho escolhido por Deus para falar aos homens

Como vimos, essas passagens bíblicas são geralmente interpretadas com 4 respostas rápidas e absurdas: 1. é um erro de tradução; 2. o autor escreveu isso, mas não quis dizer isso; 3. naquela época era assim mesmo e irmão casava com irmã e 4. o livro foi escrito por homens e os homens às vezes erram e se confundem. Isso, para não citar os que ainda distorcem muito mais a Palavra de Deus e prontamente interpretam: a Bíblia está autorizando o casamento consanguíneo…

Lembremos que as Sagradas Escrituras falam de realidades espirituais e tratam, sempre, da santificação e salvação do homem. Para os verdadeiros intérpretes da Palavra, os que vivem sob a ação do Espírito Santo e não sob teologias e teorias "da moda", o Cântico dos Cânticos trata da última e mais proeminente fase da vida espiritual, aquela que os místicos carmelitas chamaram de Matrimônio Espiritual.

O noivo, esposo, amante, dos Cânticos é o próprio Cristo, a quem devemos nos unir (Jo 17,21) e permanecer unidos (Jo 15,4). A amada é a alma de cada ser humano, por quem Cristo deu até a sua última gota de sangue para salvar através de sua Paixão, Morte e Ressurreição. Assim, ela é irmã pois, pela Encarnação, Cristo se tornou um de nós e nos fez filhos de Deus, como "primogênito entre uma multidão de irmãos" (Rm 8,29). Mas, também é amada, também precisa se tornar esposa como já citamos várias vezes.

Espero que, a partir de agora, faça uma experiência diferente e cada vez mais profunda com a Palavra de Deus. Afinal, Ele quer falar conosco, quer ser íntimo, quer nos apoiar e conduzir. Um dos caminhos que Ele mesmo escolheu para realizar todas essas coisas são as Sagradas Escrituras.



Flávio Crepaldi

Flavio Crepaldi é teólogo, casado e pai de três filhas. Além do bacharelado em Teologia, possui formação em Comunicação e especialização em Gestão, sendo colaborador da TV Canção Nova desde 2006. É o autor do livro "Santidade para todos: Descobrindo as Moradas Interiores", em que, de maneira prática e descomplicada, ele explica o caminho espiritual pela busca da santidade.


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/biblia/historia/biblia-fonte-de-espiritualidade/


22 de setembro de 2021

O segredo da cura


Em Lucas 5,1-5, temos um reflexo do que todos nós já passamos ou estamos passando. Pedro disse a Jesus: "Senhor, trabalhamos a noite inteira e não conseguimos nada" (idem 5b). Isso é reflexo do que vivemos e dizemos tantas vezes a Jesus: "Senhor, de que adiantou tanta luta?". Diante do desespero, nós diremos sempre essa mesma frase.

O primeiro segredo da cura dos traumas de Pedro, que representa a Igreja, foi quando Cristo chegou e ele estava consertando a rede. À noite, não tinha como ver que esse objeto estava rasgado, e ele só viu isso de manhã. Quando as coisas não estão bem em nossa vida, quando nos acontecem situações difíceis, buscamos culpados ou desculpas. Fracassos não resolvidos são sementes de novos e maiores fracassos. Você quer ser curado de seus traumas? Então, é preciso consertar suas "redes"!

O segredo da cura

Foto Ilustrativa: Wesley Almeida/cancaonova.com

O Todo-poderoso trabalha no diálogo, Ele cura cada coisa que vamos pedindo

O ser humano é capaz de realizar o ótimo, mas também capaz de realizar o péssimo, pois é como uma rede que vai se estragando ao longo da vida. Existem pessoas que trazem traumas desde a barriga da mãe, em sua infância ou provocado por outras pessoas. A nossa grande missão é consertar as "redes"; é preciso lavar nossas "redes", nosso coração, que é sede das emoções e das decisões. É necessário ter equilíbrio e dosar as coisas; ter disciplina no comer, em tudo. Sem disciplina espiritual não acontece cura. A indisciplina não deixa que a graça de Deus entre em nossa vida.

As pessoas que não são capazes de fazer pequenas renúncias, não farão as grandes. Você quer ser uma pessoa curada? Cuide da sua alimentação; não prepare seu inconsciente para ter fome. O grande poder de cura é a Palavra de Deus, é essa Palavra que tem poder de restauração. Quando ela entra em seu inconsciente começa a agir. Mesmo que você não sinta, saiba que a Palavra está agindo. Mas Deus não nos violenta nunca, Ele só age em nós quando permitimos Sua ação.


Diálogo com Deus

O Todo-poderoso trabalha no diálogo, Ele cura cada coisa que vamos pedindo, por isso a necessidade de fazermos um roteiro. Preciso me conscientizar de quais áreas da minha vida precisam ser equilibradas. 99% das doenças vêm de traumas; e o trauma é o nosso grande inimigo. Existem pessoas que confessam seus pecados desde a infância, porque são traumas. O povo e os padres precisam se convencer de que não adianta reclamar. O trauma é como uma torneirinha pingando; enxugamos o local, mas depois está molhado novamente. Muitas pessoas fazem uma confissão sincera, mas, mesmo assim, continuam pecando, porque, na verdade, são portadoras de traumas e precisam ser curadas na raiz. Por isso, peça que o Espírito Santo venha curá-lo nas áreas que você realmente precisa.

Os traumas atingem três áreas: física, espiritual e psicológica. É preciso identificar quais são os seus traumas. Use sua memória para retomar a situação de pecado que você viveu, naquele em que você sempre caiu e peça a Deus o discernimento para descobrir a raiz desse mal [pecado].

Padre Léo, scj


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/espiritualidade/cura-interior/o-segredo-da-cura/


20 de setembro de 2021

Evangelizar, um exercício de criatividade


Quem não se lembra daquela passagem do livro dos Gêneses em que Deus, depois de criar o mundo e todas as coisas que nele existem, pede ao homem que nomeasse tudo aquilo que Ele havia criado? E, a Palavra de Deus afirma que o homem, obedecendo ao seu criador, foi capaz de dar nomes a todos os animais da terra, às aves do céu e a todas as feras selvagens (cf. Gn 2, 20).

Claro que, ao dar esta ordem, Deus sabia que o homem teria criatividade o suficiente para cumprir esta tarefa. Caso contrário, Ele jamais teria dado esta incumbência ao homem. Isso demonstra que o ser humano não possui apenas esse dom maravilhoso da criatividade, mas tem a capacidade para bem usá-lo.

Evangelizar,-um-exercício-de-criatividade

Foto Ilustrativa: Sakorn Sukkasemsakorn by Getty Images

Para levar a evangelização as pessoas é preciso ter criatividade

Contudo, a criatividade é uma capacidade que precisa ser usada, explorada, desenvolvida. Se isso não for feito, pode acontecer algo semelhante com o que acontece com os músculos do nosso corpo quando não é estimulado; sem estímulo o músculo acaba passando por um processo de encurtamento e, por fim, atrofia.

A criatividade é, certamente, um talento valiosíssimo e pode ser usado em qualquer esfera da nossa vida, seja dentro das atividades profissionais, no seio familiar, na convivência com os amigos ou em qualquer outro ambiente que faz parte da vida de cada um. Se a criatividade pode ser usada em todos estes meios citados anteriormente, no exercício da evangelização não é que ela "possa", mas "deve" ser usada.

Seja criativo

Evangelizar, nos dias de hoje, exige muita criatividade. Mas preste atenção! Não se trata, aqui, de uma criatividade desvairada, descabida ou até ridícula. A criatividade que deve ser usada como ferramenta de evangelização é aquela que é maturada na oração e no discernimento. Aquela que vem do Espírito Santo. É o Espírito Santo, aliás, o "Criativo" por excelência. Dele vem toda a criatividade necessária para a evangelização.


Por outro lado, a criatividade não é um dom que se basta por si ou um talento que subsiste de modo isolado, pelo contrário, ela possui companheiras muito próximas que a faz produzir frutos abundantes. Duas dessas companheiras, por exemplo, são: a ousadia e a iniciativa. A criatividade do Espírito unida à ousadia torna-se potência de evangelização. Da mesma forma, o espírito de iniciativa, conjugado com a criatividade que brota de Deus possui uma força de evangelização estupenda.

Trabalhando sua criatividade

Assim, o ato de evangelizar é, também, um exercício de criatividade! Contudo, esta criatividade deve estar unida à oração, ao senso de iniciativa e à ousadia do Espírito. Quem poderia afirmar, por exemplo, que o jovem beato Carlo Acutis não fora criativo e ousado ao iniciar uma evangelização pela internet ainda no início dos anos 2000? Aliás, afirmar a existência de um "santo criativo" é quase que fazer uma afirmação pleonástica, afinal, que santo não teria sido criativo no Espírito?

Enfim, concluo este artigo com outra fala do Papa Francisco que serve para todos aqueles que desejam evangelizar: "encorajo-vos a dar espaço à criatividade, imaginando e construindo novos percursos [de evangelização]. A criatividade é fundamental". Sejamos todos criativos no Espírito!



Gleidson Carvalho

Gleidson de Souza Carvalho é natural de Valença (RJ), mas viveu parte de sua vida em Piraúba (MG). Hoje, ele é missionário da Comunidade Canção Nova, candidato às ordens sacras, licenciado em Filosofia e bacharelando em Teologia, ambos pela Faculdade Canção Nova, Cachoeira Paulista (SP). Atua no Departamento de Internet da Canção Nova, na Liturgia do Santuário do Pai das Misericórdias e nos Confessionários. Apresenta, com os demais seminaristas, o "Terço em Família" pela Rádio Canção Nova AM. (Instagram: @cngleidson)


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/igreja/catequese/evangelizar-um-exercicio-de-criatividade/


17 de setembro de 2021

Afinal, para que existe a Bíblia?


Sabemos que, para cada coisa, existe um instrumento adequado ou a melhor ferramenta. Você não tentaria esquentar uma pizza no freezer ou usar uma faca para cortar as unhas. Também para o estudo, esta é a primeira e uma das mais importantes perguntas a se fazer: qual é o material que eu preciso para entender determinado assunto? Ou, do que se trata este livro?

E, mesmo que seus assuntos sejam diversos e abrangentes, sempre deverá existir uma boa definição identificando o que realmente se trata, qual o seu escopo ou foco principal. Por exemplo, encontramos lindíssimas reflexões em Fernando Pessoa, como: "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce" e "a Cruz no alto diz, que o que me há na alma e faz em mim a febre de navegar, só encontrará de Deus na eterna calma, o porto sempre por achar". Nem por isso podemos dizer que suas obras são espirituais ou tratam de espiritualidade. É poesia, são obras poéticas.

Pensando nisso, pode-se perguntar: do que se trata a Bíblia, afinal de contas? Qual seu escopo, qual seu objetivo final e propósito? Hugo de São Vítor o define assim:

"A matéria [o assunto] das Sagradas Escrituras consiste na obra da restauração (…) [que] é a Encarnação do Verbo com todos os seus mistérios, seja aqueles que o precederam desde o início dos séculos, seja aqueles que o seguirão até o fim do mundo."

Isto é, todos os livros da Bíblia estão focados na salvação e santificação do ser humano. Isso só foi possível por meio da história e só é possível atualmente, na vida de cada um de nós, por causa da encarnação do Verbo e de tudo que está relacionado à humanidade e divindade de Cristo, caminho, verdade e vida (Jo 14,16).

Afinal, para que existe a Bíblia?

Foto ilustrativa: Arquivo CN

A Bíblia está focada na salvação do ser humano

Indo mais fundo, cada página, cada palavra, cada história narrada está ordenada para este objetivo último de santificação e salvação. Um livro espiritual que transmite espiritualidade através da Verdade Revelada. E, como vimos no artigo "Os sentidos espirituais da Palavra de Deus", estas altíssimas verdades espirituais também podem ser fatos históricos (sentido literal), nos ensinam a viver bem entre irmãos (sentido moral), abrem nosso entendimento para enxergar além da realidade que nos cerca (sentido alegórico) e nos explicam realidades da vida celeste (sentido anagógico).

Se os livros bíblicos existem para nos levar à santificação nesta vida e à salvação eterna como consequência natural disso, fica claro o porquê de os sentidos espirituais da Palavra de Deus deverem ser buscados e o motivo de serem tão importantes. Na verdade, o sentido espiritual é tão importante que, às vezes, o sentido literal é deixado de lado e a leitura se torna confusa ou um pouco irreal.

Por causa de maus pregadores e péssimos estudiosos, é comum que, ao se depararem com trechos bíblicos aparentemente confusos, contraditórios e, até mesmo ofensivos, ouvirmos explicações como: "Não era bem isso que o autor sagrado quis dizer… Naquela época, isso parecia normal para as pessoas… No original não está assim, é que não existe uma boa tradução para este caso".

Há um profundo mistério envolvido em cada trecho bíblico

Podemos respeitar a opinião de todos, mas é sempre bom nos alinharmos com os verdadeiros doutores da Igreja, os que foram testados em sabedoria e santidade. Afinal, também vimos, no artigo anterior, que a Bíblia é um livro selado e somente o Cordeiro o abre e o dá a conhecer a quem Ele ama, seus santos. Deus nos convida à santidade e, somente através dela, temos um verdadeiro encontro com ele: "Eis que estou à porta e bato, se alguém ouvir a minha voz e me abrir a porta, entrarei nele e cearei com ele e ele comigo" (Ap 3, 20).


Santo Agostinho explicava que, ao se deparar com um trecho obscuro e aparentemente absurdo nas Sagradas Escrituras, deveríamos redobrar a atenção: existe uma verdade espiritual profunda ali. Um ensinamento e um mistério que nos abre as portas para a santificação. Para ficar mais claro, examinemos dois exemplos:

O desejo da Sabedoria

No primeiro, Jacó, após trabalhar sete anos para ter o direito de se casar com Raquel, passa a noite de núpcias com Lia, irmã dela, e só nota o engano promovido por seu sogro Labão, no dia seguinte (Gn 29, 20-27).

Interpretada literalmente, a narração beira o absurdo. Que homem, amando profundamente uma mulher ao ponto de se sujeitar a sete anos de trabalho por ela, não reconheceria uma troca destas na noite de núpcias? Deixemos as explicações simplórias ou as desculpas que denigrem a Palavra de Deus. Siga Santo Agostinho: que verdade importante e misteriosa há aí que só os que buscam a santidade veem? Ouça Hugo de São Vítor: o assunto das Sagradas Escrituras sempre é a obra da restauração do homem caído pelo pecado.

Um discípulo de Hugo, chamado Ricardo de São Vítor (1110-1173), explica que esse equívoco grotesco acontece não somente com Jacó, mas com todos aqueles que buscam a Santidade. De fato, Raquel é o símbolo da Sabedoria e todos passam a desejá-la assim que percebem a sua existência através da conversão pessoal. A Bíblia é explícita em dizer que "Jacó serviu por Raquel sete anos, que lhe pareceram dias, tão grande era o amor que lhe tinha" (Gn 29,20).

Não há santidade sem busca das virtudes!

Quem lê a Palavra e não deseja encontrar as revelações de Deus? Quem não quer sua sabedoria? No entanto, ao se direcionar à busca da santidade, essa não lhe é dada facilmente. Existe luta, suor, dedicação (representada pelos sete anos de trabalho) e, finalmente, nunca haverá santidade sem que antes haja a conquista das virtudes. Essa é Lia! A irmã mais velha da Sabedoria é a Virtude. E não existe encontro íntimo com a santidade, sem antes um verdadeiro casamento com as boas obras.

Como todo homem que quer ser legitimamente santo (casar-se com Raquel), Jacó precisará primeiro possuir a virtude (casar-se com Lia). Ou todo aquele que deseja ardentemente a sabedoria de Deus precisa entregar-se à guerra interior (os sete anos de trabalho) de dominar as suas paixões e vícios, possuir a virtude (unir-se com Lia), para depois ter direito à Sabedoria almejada (unir-se com Raquel).

Santificar-se é unir-se ao Cristo

No segundo exemplo, vemos Rute, a moabita, que, após ficar viúva, seguiu sua sogra, também viúva, para a terra de Israel (Rt 1,14). Embora todo o livro de Rute tenha um conteúdo alegórico maravilhoso, existe um trecho que é uma verdadeira pedra de tropeço para aqueles que não contemplam o sentido espiritual da Bíblia e seu retrato-estímulo para nossa santidade e salvação.

Rute narra à sua sogra Noemi o acolhimento que teve por parte de Booz, senhor de muitas terras em Belém, dizendo que ele permitiu que ela andasse recolhendo as espigas caídas no chão para que as duas não passassem fome. Logo após, recebe um conselho inusitado de sua sogra. Noemi recomenda que ela tome um banho, coloque seu melhor vestido, espere o senhor Booz estar bem satisfeito com a comida e bebida, deitar-se para dormir, para que a moça, sorrateiramente, levante a coberta de seus pés e deite-se naquele lugar. O objetivo? Booz acordaria e encontraria Rute deitada aos seus pés, debaixo de sua coberta. A partir daí, a moça deveria fazer o que ele dissesse (Rt 3,1-9).

Deixemos de lado as desculpas de que "se fazia assim em Israel naquele tempo", porque não é verdade nem lá e nem em lugar nenhum. A evidente falta de lógica na situação nos leva a pensar: isso é símbolo de quê? Se, como vimos, a Palavra de Deus trata prioritariamente da restauração e santificação humana, por que um livro inteiro para mostrar como foi gerado o avô do rei Davi, Obed, filho de Rute e Booz (Mt 1,5)?

A alma obediente de Rute

Uma das interpretações espirituais dos santos padres dos primeiros séculos, recolhida e sistematizada pelos teólogos da Abadia de São Vítor, em Paris, no século XII, é que o livro retrata a alma obediente (Rute), que parte em busca de Cristo (Booz).

Ela conta a história de Rute, nome que traduzido significa "a que se apressa". Rute é orientada por Noemi, ou "formosa", pois é o pregador que tem a beleza das virtudes e orienta a alma. É designado por uma mulher porque assim como as mulheres geram filhos, os que ensinam a Palavra geram almas para Deus.

Na passagem em questão, a alma obediente ao diretor espiritual que a orienta lava-se do seus pecados, veste-se com os vestidos das virtudes e boas obras e vai ao encontro do Cristo. Mas, por melhor que se prepare a alma, ela nunca estará a altura da dignidade do seu salvador. Por isso, deve esperar que o Cristo esteja saciado em cumprir a vontade do Pai, pois Ele mesmo diz que esta é sua comida e sua bebida (Jo 4,34). Só então, percebendo que o Salvador vê seu esforço pelas boas obras e entendendo que está saciado ao ver o Reino de Deus que se propaga, a alma pode se aproximar.

A sabedoria é o próprio Cristo

Mas não de qualquer maneira, não de igual para igual. Investigando humildemente o mistério da nossa redenção operada pela encarnação do Verbo, simbolizada por deitar-se aos seus pés (o membro mais próximo da terra) e aguardando que Ele a veja e a oriente devidamente. O objetivo final? A união plena com Cristo ou, como chamava Santa Teresa d'Ávila, o matrimônio espiritual.

Claro, não podemos esquecer que os sentidos espirituais estão baseados no sentido literal e o pressupõe, como tão bem determinou Santo Tomás de Aquino. Tão perigoso quanto acreditar que a Bíblia é somente um livro histórico com a narração de fatos que ocorreram a, pelo menos, dois mil anos, é ignorar seu sentido literal, inventando sentidos espirituais inexistentes. Por isso, a chave espiritual da Bíblia sempre será o encontro pessoal e profundo com Cristo, a verdadeira porta (Jo 10,9).

Fica, portanto, o convite para se unir com Lia, antes de chegar a Raquel. E de seguir os conselhos de Noemi, para finalmente encontrar-se com Booz. Recusando a vida de pecado e buscando com afinco a vivência das virtudes chegará o momento de desposar a Sabedoria, que é o próprio Jesus Cristo.


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/biblia/historia/afinal-para-que-existe-biblia/


14 de setembro de 2021

Conhecendo a tática do inimigo


Por meio da Carta aos Efésios, já sabemos com quem estamos lutando: "Afrontamos as autoridades, os poderes, os dominadores deste mundo tenebroso, os espíritos do mal que estão espalhados nos ares" (cf. Ef 6,12), ou seja, a nossa luta direta é contra satanás e seus demônios.

Todo exército, quando sai para um combate, precisa se preparar antes, ter conhecimento da geografia, do lugar onde será o combate, o tipo de armas que o inimigo tem, o número de soldados que possui etc. Tudo isso com o intuito de vencer a guerra.

No mundo espiritual, que é o ambiente onde estamos combatendo, também é desse jeito, por isso, precisamos conhecer a tática do nosso inimigo para não perdermos a batalha.

Conhecendo a tática do inimigo

Foto Ilustrativa: Wesley Almeida/cancaonova.com

Precisamos conhecer a tática do inimigo para estarmos preparados para enfrentá-lo

Jesus, no Evangelho de João, revela-nos o que, realmente, é o objetivo de nosso inimigo: "O ladrão vem só para roubar, matar e destruir" (cf. Jo 10,10). Essa é a tática principal e o grande investimento de nosso inimigo. Temos três pontos a serem analisados:

1) Vem roubar 

Roubar de Deus aquilo que é de Deus; roubar-nos, roubar os nossos pais, os nossos irmãos, os nossos amigos, as pessoas de nosso grupo, de nossa cidade, as crianças, os jovens, os idosos, e se não nos cuidarmos, até nós mesmos.

2) Vem matar 

Matar-nos espiritualmente, afastando-nos de Deus, e matar-nos fisicamente, por que como São Paulo diz: "O salário do pecado é a morte" (cf. Rm 6, 23); basta olharmos para as pessoas que se viciam, que são alcoólatras, que estão no tráfico de drogas, no roubo, na corrupção, na prostituição, no ódio, no ressentimento, para ver como todos eles são atacados pela morte. Veja a consequência da droga, veja a consequência do álcool, veja os resultados da corrupção e as inúmeras situações de pecado. Então, é isso, salário é tudo aquilo que você ganha por aquilo que você faz.

3) Vem destruir

As famílias, os grupos de Igreja, a política, as vocações, basta olharmos tudo que tem acontecido e veremos concretamente isso. Quanta briga e separação nas nossas famílias, quanta divisão nos grupos dentro da Igreja, quanta corrupção na política e em todos os outros setores da sociedade, quantos sacerdotes, religiosos e religiosas, pessoas consagradas que tem deixado a sua vida de doação por ataques do maligno.

O que nosso inimigo tem usado para conseguir colocar em prática essa tática?

Os meios de comunicação, as novelas, os filmes, as músicas, a pornografia… E ele não para de nos atacar de todos os lados, é uma grande conspiração contra os filhos de Deus, "pois o diabo desceu para o meio de vós com grande furor, sabendo que lhe resta pouco tempo" (cf. Ap 12,12), somos objetos da luta dele, e por isso precisamos estar atentos e cientes de sua tática e não cairmos, para também resgatarmos os amados de Deus. "Sede sóbrios e vigilantes. O vosso adversário, o diabo, rodeia como um leão a rugir, procurando a quem devorar. Resisti-lhe, firmes na fé"(1 Pd 5,8-9a).

Com certeza, você conhece alguém que era firme na Igreja, que era de liderança de grupo, pessoas talvez que você admirava e que caíram na sedução do inimigo e estão fora da bênção de Deus. Precisamos resgatá-los, pois o amor de Deus por eles é tremendo, por isso o exército da paz precisa ir até eles, falar e testemunhar "o amor de Deus que supera tudo".

Temos de dizer sim a Deus, ao louvor, à oração, à confissão, a uma participação intensa na Santa Missa, à santidade e a todas as armas espirituais que temos para combater.


Exemplo de batalha

Lembro-me de uma história que é contada no livro "Sabedoria em parábolas", do professor Felipe Aquino, em que uma tropa estava ferida numa batalha e um dos soldados pediu ao comandante para ir resgatar os seu amigo que não tinha voltado daquele combate, e o comandante não deixou porque tinha certeza que aquele soldado que ficara para trás estava morto; e, se o soldado fosse, seria mais uma baixa para sua tropa.

O soldado, porém, teimou e foi escondido. Tarde da noite, ele volta todo ferido e ensanguentado, com seu amigo morto nas costas. O comandante fica irritado e briga com ele, e o questionava do que tinha valido todo aquele esforço para resgatar seu amigo. O soldado virou para o comandante e disse chorando: "Quando eu cheguei lá, ele ainda estava vivo. Com um sorriso nos lábios, meu amigo me disse: "Eu sabia que você viria me buscar e não me deixaria aqui sozinho".

Irmãos, essa é a nossa missão ao conhecer a tática de nosso inimigo, resgatar esses nossos irmãos e amigos que estão feridos pelo pecado, pelos ataques do inimigo, tristes, deprimidos, sujos na lama do mundo. Não fique parado, por amor de Deus, seja uma pessoa diferente, que pela alegria, pelo amor, pela acolhida, na luta pela santidade, será sinal de resgate para tantos que estão definhando nesse mundo.

"Somos combatentes de Deus, erguei-vos para o combate, é hora de lutar". O Amor sempre vencerá!

Padre Roger Luis
Sacerdote da Comunidade Canção Nova


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/espiritualidade/vida-de-oracao/conhecendo-a-tatica-do-inimigo/


10 de setembro de 2021

Qual é a diferença entre o professor e o educador?


"Professor é profissão. Educador é missão" (Salomão Becker).

Tenho de trazer uma dura, porém, uma pura verdade da docência: "todo educador é professor, mas nem todo professor é educador". Professor é uma profissão, enquanto que educador é mais do que isso, é dom, é missão, é vocação. Ressalto que, não é a intenção deste texto desmerecer ou diminuir o papel do professor, e sim diferenciar o educador do professor. Sabendo que ambos são fundamentais para o desenvolvimento intelectual e integral do aluno, inserindo-o na sociedade.

Qual a diferença entre o professor e o educador?

Foto ilustrativa: Wesley Almeida/cancaonova.com

Professor x Educador

Imaginemos a seguinte situação: você fez a faculdade de Matemática, por exemplo, porque gosta dos números, da exatidão do "2 + 2 = 4", da complexidade da equação de 2º grau. Você pretendia seguir carreira na área de matemático, mas como opção de emprego, encontrou uma vaga numa escola de Ensino Fundamental do 6º ao 9º ano.

Sendo assim, você elabora o seu Plano de Ensino de acordo com os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), prepara suas aulas, entra em sala de aula e desenvolve muito bem o seu papel. Além disso, você acompanha o desenvolvimento cognitivo dos seus alunos. Você sabe exatamente o aluno que é nota 10, o que é mediano, e sabe, ainda mais, os alunos que são abaixo da média.

No entanto, saber disso não interfere na sua metodologia, isto é, você continua elaborando suas aulas e desenvolvendo-as bem, mas não mudou o seu modo de agir. O caminho para atingir o objetivo do aprendizado eficiente continua o mesmo que você usava para a geração de alunos do ano 2005, sendo que estamos em outra década. Então, meu caro colega, você é professor por profissão e não educador por vocação.

O educador tem como vocação o dom de ensinar, e isso é natural nele

Você está, ali, para ensinar os componentes curriculares, para "dar conta do recado" e obter resultados razoáveis. Isso é ruim? Não! Afinal, é dever do professor levar o conhecimento intelectual (em suas várias vertentes) aos alunos. Porém, com o passar dos anos, a estafa tomará conta da sua rotina: as horas/aulas, as reuniões incontáveis de planejamento, de professores, pais e coordenadores da sua área de atuação etc.

O salário que, cá entre nós, sabemos não ser (nem de longe) o melhor que o professor mereça, começa a pesar duramente no bolso e nas atitudes. Você passa a lecionar de acordo com o valor que recebe. Um salário péssimo passará a ser sinônimo de uma aula ruim, e o seu engajamento como educador começará a se perder.

Não há mais motivação nem de onde as tirar, você tem especializações e cursos diversos, mas começa a bater um vazio, um esfriamento vocacional perceptível antes a você e depois aos que estão ao seu lado, inclusive seus alunos.

Cada aluno é uma vida a ser tecida

Já o educador tem como vocação o dom de ensinar, e isso é natural nele. Não que o salário e o reconhecimento não sejam importantes, no entanto, ele sabe que os que ali estão à espera do que ele tem a ensinar, não têm culpa do valor da hora/aula recebida por ele. Ele reconhece naqueles alunos muito mais do que médias e resultados satisfatórios. O educador sabe que, ali, naquela sala de trinta e poucos alunos, cada um é uma vida a ser tecida. Ele sabe da importância que ele tem para a vida daqueles, e isso já lhe basta.


Independente das características individuais de cada aluno, ele consegue diagnosticar em cada um sua melhor habilidade, qual a sua competência; e a partir desse "diagnóstico", inicia um novo método de ensino-aprendizagem, de fato, eficiente. Alguns podem dizer que é utopia, que isso é impossível, porém, tenho absoluta certeza de que você conhece algum colega professor que, ao entrar em uma sala de aula, é recebido com tanto entusiasmo pelos alunos, e esses ficam atentos à aula dele de maneira nunca vista com outro professor; então, esse professor é também educador.

O educador enxerga sempre o melhor

Faça uma reflexão: Quantos professores marcaram a sua vida? Lembre-se do nome de, pelo menos, um. Agora, esse mesmo professor marcou a sua vida de modo positivo ou negativo? Se a sua resposta foi "de modo positivo", então, você teve um educador na sua vida. E quanta sorte você teve!

Sei que, no atual contexto educacional do nosso país, onde os professores não têm o devido reconhecimento necessário, é muito difícil ser educador quanto se tem tudo para ser um professor e ponto. Mas se você consegue enxergar além dos "erros" do seu aluno, não os vê como obstáculos para o aprendizado, e sim como base para um novo aprendizado, reconhecendo que um aluno feliz com ele mesmo aprende mais e melhor, seja bem-vindo ao mundo dos educadores, que enxergam uma grande esperança nos alunos.

Educar vai além de ensinar a ler e escrever, de ensinar continhas de mais e menos. Educar é adentrar-se na vida do aluno e ali enxergar bondade, inteligência, múltiplas habilidades. E até mesmo naquele aluno que todos dizem "não ter solução", o educador enxerga o melhor.

O educador é, muitas vezes, a única referência boa de vida para os alunos

O educador alfabetiza, mas também ensina o aluno a fazer a "leitura de mundo". O ensina a enxergar nas entrelinhas de sua própria vida e da história da sociedade. O educador zela pela sua vocação; e mesmo faltando recursos, sobrecarregado de burocracias, ele não deixa a "peteca cair". Ele entra na sala de aula disposto a dar o melhor de si, porque sabe que, na vida de muitos alunos, ele é o único exemplo bom, pois ele é, muitas vezes, a única referência boa que os alunos têm.

Cada aluno que passa pelas mãos de um educador não sai o mesmo. Porque o educador tem o dom de semear nos terrenos mais inférteis e, dali, receber e distribuir as mais lindas sementes. Fica um pouco dele em cada aluno, e ele também aprende, além disso, é semeado em seu coração mais humanidade, mais amor e compreensão.

"Professor é profissão, não é algo que se define por dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é profissão, é vocação. E toda vocação nasce de um grande amor, de uma grande esperança" ( Rubem Alves).

Marcília Ferrer, professora


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/atualidade/educacao/qual-e-diferenca-entre-o-professor-e-o-educador/