13 de março de 2017

O que da vida não se descreve

Quero descobrir a graça de sorrir diante de tudo o que ainda não sei

Eu me recordo daquele dia. O professor de redação me desafiou a descrever o sabor da laranja. Era dia de prova e o desafio valeria como avaliação final. Eu fiquei paralisado por um bom tempo, sem que nada fosse registrado no papel. Tudo o que eu sabia sobre o gosto da laranja não podia ser traduzido para o universo das palavras. Era um sabor sem saber, como se o aprimorado do gosto não pertencesse ao tortuoso discurso da epistemologia e suas definições tão exatas.

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Foto: warrengoldswain by Getty Images

Diante da página em branco, eu visitava minhas lembranças felizes, quando na mais tenra infância eu via meu pai chegar em sua bicicleta Monark, trazendo na garupa um imenso saco de laranjas. A cena era tão concreta dentro de mim, que eu podia sentir a felicidade em seu odor cítrico e nuanças alaranjadas. A vida feliz, parte miúda de um tempo imenso; alegrias alojadas em gomos caudalosos, abraçados como se fossem grandes amigos, filhos gerados em movimento único de nascer. Tudo era meu; tudo já era sabido, porque já sentido. Mas como transpor esta distância entre o que sei, porque senti, para o que ainda não sei dizer do que já senti? Como falar do sabor da laranja, mas sem com ele ser injusto, tornando-o menor, esmagando-o, reduzindo-o ao bagaço de minha parca literatura?

Não hesitei. Na imensa folha em branco registrei uma única frase. "Sobre o sabor eu não sei dizer. Eu só sei sentir!"

Eu nunca mais pude esquecer aquele dia. A experiência foi reveladora. Eu gosto de laranja, mas até hoje ainda me sinto inapto para descrever o seu gosto. O que dele experimento pertence à ordem das coisas inatingíveis. Metafísica dos sabores? Pode ser…

O que posso falar sobre o que sinto?

O interessante é que a laranja se desdobra em inúmeras realidades. Vez em quando, eu me pego diante da vida sofrendo a mesma angústia daquele dia. O que posso falar sobre o que sinto? Qual é a palavra que pode alcançar, de maneira eficaz, a natureza metafísica dos meus afetos? O que posso responder ao terapeuta, no momento em que me pede para descrever o que estou sentindo? Há palavras que possam alcançar as raízes de nossas angústias?

Não sei. Prefiro permanecer no silêncio da contemplação. É sacral o que sinto, assim como também está revestido de sacralidade o sabor que experimento. Sabores e saberes são rimas preciosas, mas não são realidades que sobrevivem à superfície.


Querer a profundidade das coisas é um jeito sábio de resolver os conflitos. Muitos sofrimentos nascem e são alimentados a partir de perguntas idiotas.

Quero aprender a perguntar menos. Eu espero ansioso por este dia. Quero descobrir a graça de sorrir diante de tudo o que ainda não sei. Quero que a matriz de minhas alegrias seja o que da vida não se descreve.

9 de março de 2017

Autoconhecimento é importante?

Muitos acham que se conhecem, mas até que ponto chega esse autoconhecimento?

Vivemos em um mundo que nos incentiva a sermos independentes de Deus e de todos. Incentiva-nos a uma autorrealização que, para a grande maioria, parece cada vez mais distante, pois se trata de incentivo a uma vida cada vez mais fora de nós mesmos, cada vez mais exteriorizada. O resultado disso é que as pessoas se preocupam cada vez menos com seu interior e cuidam menos dele, gerando sentimentos de frustração e de vazio. Por causa disso, encontramos um número crescente de pessoas que sentem um grande vazio interior e uma grande insatisfação, não conseguindo sequer dar nome ao próprio sentimento. O autoconhecimento é necessário.

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Foto: Daniel Mafra / cancaonova.com

A sabedoria clássica considera o pensamento de Sócrates – "Conhece-te a ti mesmo" – como ponto de partida da filosofia humana. No entanto, esse é um caminho muito difícil de ser percorrido para quem não tem um referencial, um modelo de personalidade a ser atingido. Nós cristãos, que temos Jesus Cristo como modelo, precisamos ter a coragem de nos pôr a caminho e de nos conhecer em profundidade. O autoconhecimento é um caminho que nos leva a olhar para dentro de nós mesmos e a reconhecer nossos dons e talentos recebidos de Deus e também os nossos limites, fraquezas e os pontos que precisam ser melhorados. "Conhecer-se a si mesmo é uma necessidade e um dever do qual ninguém pode subtrair-se. O homem tem necessidade de saber quem é. Não pode viver se não descobre que sentido tem sua vida. Arrisca-se a ser infeliz se não reconhecer sua dignidade" (Amarás o Senhor teu Deus – Amadeo Cencini – pág. 8 – Edições Paulinas).

Conhecer-se a si mesmo é uma necessidade fundamental para se ter um conceito correto e real de si próprio, pois somente quem descobre seu verdadeiro valor consegue uma aceitação serena de si mesmo e de suas limitações, o que lhe proporciona a segurança necessária para viver e realizar mudanças essenciais.

Muitos acham que se conhecem, mas até que ponto chega esse autoconhecimento? Para que você possa averiguar isso, recomendo um teste simples: escreva em uma folha 10 qualidades que você reconhece possuir e 10 pontos fracos que precisam ser melhorados. O que foi mais fácil para você escrever? As qualidades ou os defeitos?

O autoconhecimento nos leva à autoestima e ao amor-próprio, ou seja, a olharmos para nós mesmos reconhecendo-nos como criaturas de Deus, como obras-primas de Deus, sem exaltações nem degradações.

Sem essa visão, o que é gerado é insegurança, perfeccionismo, dificuldade de lidar com os próprios erros e fraquezas e também com os dos outros, entre muitas outras consequências. Santo Agostinho afirmava: "Conhecer-me e conhecer-Te", com isso, ele nos ensina que quanto mais nos conhecemos, tanto mais conhecemos Aquele que nos criou e que é a luz do mundo, de modo que veremos a realidade de forma mais adequada.

Volte à lista que você fez. Nas qualidades descritas, marque as alternativas relacionadas ao fazer, a atitudes externas e observe quantas você colocou de atitudes externas e quantas internas. Assim, você poderá perceber não só o quanto você se conhece, mas também o quanto você está voltado para as coisas exteriores.

A importância do exame de consciência

A Igreja nos dota de uma grande ferramenta de autoconhecimento: o exame de consciência diário. Com ele, é possível avaliarmos bem onde podemos ser atingidos pelo inimigo, os nossos pontos fracos, nossos defeitos, paixões e vícios camuflados. Com isso, podemos voltar confiantes para o Senhor, que nos ama e sempre cuida de nós. Apresentando-nos a Ele como somos, sem medo, sem receios e buscando n'Ele a força diária para vencermos nossas batalhas interiores. São Francisco afirmava: "Eu sou o que sou diante de Deus, e mais nada!". O Senhor nos vê como somos, diante d'Ele não precisamos nos esconder.

Trata-se de uma ferramenta simples, basta dedicarmos poucos e breves minutos do nosso dia ao Senhor, com constância. Dessa forma, vamos, pouco a pouco, conseguindo olhar mais a fundo para o nosso interior e conhecendo não só nossos limites, como nossas riquezas. Precisamos entender que as nossas limitações não estão no nosso exterior, no que fazemos, mas sim, no nosso interior, naquilo que somos. Somos filhos de Deus, filhos amados de Deus! O nosso principal valor está no ser pessoa.


Precisamos saber quem somos, quais nossos dons e talentos; do mesmo modo, precisamos também saber quais são nossos objetivos no uso dessas capacidades. Pois não é somente aquilo que possuímos que decide o nosso valor como pessoa, mas o que somos no mais profundo de nossa identidade como seres humanos, como cristãos, batizados, justificados, filhos de Deus. Essa estima positiva é um valor que ninguém pode tirar de nós.

7 de março de 2017

Como conciliar a nova evangelização e a mídia?

Preparar-se para uma novidade que, a cada dia, é lançada pela mídia, urge uma preparação a partir daquilo que já existe

O homem transformou-se no homem on-line, o homem do presente, da satisfação imediata, das relações descaracterizadas, da mídia, o homem ao qual é continuamente subtraída a necessidade da escolha, porque a grande "rede" é armazém de experiências sempre disponíveis. Assim, o homem pode tornar-se um indivíduo sem memória, disperso na multidão de solidão. Na nossa época, está difundida em muitas pessoas a convicção de que o tempo das certezas passou irremediavelmente: o homem deveria aprender a viver num horizonte de total ausência de sentido, no segmento do provisório e do passageiro.

Diante desse cenário, como é possível para a Igreja ajudar os homens e mulheres que estão nos mass media e os que deles fazem uso, a empreender o caminho de um novo humanismo, de uma renovada centralidade da pessoa humana?

Como conciliar a nova evangelização e a mídia?Foto: Daniel Mafra/cancaonova.com

Entre muitos caminhos, São João Paulo II indicou três: a formação, a participação e o diálogo.

A formação

Trata-se de sair das situações de ocasionalidade e promover investimentos de recursos humanos que saibam enraizar na reflexão propriamente tecnológico-pastoral os aspectos e as competências especialmente profissionais. Muitas vezes e em muitos documentos, é recordada a urgência da formação de sacerdotes, religiosos e leigos.

A participação

Trata-se de iniciar projetos de cooperação entre as Igrejas locais para promover e coordenar instrumentos de comunicação social que se tornem espaços possíveis de comunicação segundo as perspectivas cristãs. Dessa forma, ter-se-á também a ocasião para opor-se, entre outras coisas, o processo de construção da opinião pública, que hoje é regulada com frequência por interesses e poderes econômicos. É necessário fazer crescer a cultura da corresponsabilidade.

O diálogo

O diálogo que os meios de comunicação podem favorecer precisamente a diversos níveis, os quais são veiculados de conhecimento recíproco, de solidariedade e de paz. Eles constituem um recurso positivo poderoso, se forem postos ao serviço da compreensão entre os povos; ao contrário serão uma arma destruidora se forem usados para alimentar injustiças e conflitos.

Com o fenômeno e o impacto da mídia na vida da pessoa contemporânea, o preparar-se para a novidade que a cada dia é lançada, urge uma preparação a partir daquilo que já existe. A missão de evangelizar, não pode ficar todo o tempo apenas na elaboração de projetos, que quando colocados em prática, já perderam a validade, por conta da velocidade que é o desenvolvimento comunicativo das tecnologias. Aqui o convite não é de correr atrás, mas de caminhar junto, e quem sabe vendo além daquilo que os nossos olhos podem ver.


Como conciliar nova evangelização e mídia? É possível diante da nossa realidade? Com tamanho e rápido desenvolvimento das novas técnicas de comunicação como evangelizar? Creio que o primeiro ponto de partida seja da mudança de linguagem, ou seja, não é uma evangelização pelos meios de comunicação, mas uma evangelização nos meios de comunicação.





padre Anderson Marçal

Anderson Marçal Moreira é padre da Igreja Católica Apostólica Romana. Natural da cidade de São Paulo (SP), padre Anderson é membro da comunidade Canção Nova desde o ano 2000. No dia 16 de dezembro de 2007, foi ordenado sacerdote. Estudou Teologia Pastoral Bíblica-Litúrgica na Universidade Salesiana de Roma.


Fonte: http://formacao.cancaonova.com/atualidade/tecnologia/nova-evangelizacao-e-midia/

3 de março de 2017

Fama e dinheiro: o novo "Olympus" do pregador midiático

O desejo de fama, o dinheiro no mundo atual e os religiosos nesse meio

A mensagem deveria ser sempre maior que o mensageiro, sobretudo quando se trata de vidas e povos. Por isso, Nelson Mandela passou o governo a outros e não se fez ditador, embora tenha sido ele a figura chave do fim da Apartheid. A democracia na África do Sul era maior do que ele. Já Fidel Castro ficou maior do que a revolução que liderou. Tornou-se ditador. São João Batista entendeu que era preciso que Jesus crescesse e ele diminuísse. Com isso, tem-se uma ideia de persona e personagem do teatro grego. A mensagem é sempre maior que o mensageiro; o desejo de fama e de dinheiro não pode crescer mais do que a vontade de levar o principal, que é a mensagem.

Fama e dinheiro o novo Olympus do pregador midiáticoFoto: RyanKing999  by Getty Images

A máscara era símbolo do teatro grego, chamava-se persona. De certa forma, protegia a mensagem dada no anfiteatro grego de misturar-se com a pessoa do declamador, do artista. A mensagem era maior que o artista. O que estava em jogo naquela peça era a mensagem, não o apresentador. Ele se escondia atrás da máscara, para o povo não o confundir com a mensagem. A mensagem tinha esse direito e ele também o tinha. Era como se a mensagem dissesse: "Existo antes dele. Não sou meu apresentador". Era como se o artista dissesse: "Não sou a mensagem que lhe dou. Sou menor do que ela, a depender dela". Importava não ele, mas o seu recado.

O teatro sempre vestiu seus atores com roupas e rostos dos personagens. Eles personificavam outras pessoas e eram respeitados por causa disso. Sabiam interpretar e mostrar uma mensagem. Com o advento do cinema e da televisão, os rostos passaram a não mudar e os closes mostravam não o papel, mas o artista. O personagem ficou para trás e quem se destacou foi o artista. A mensagem ficou menor do que o seu mensageiro.

Fábricas de ídolos

O novo fato chegou às outras mídias e ao púlpito também: cantor mais importante do que a canção, pregador mais importante do que a liturgia, ator mais importante do que a peça, apresentador mais importante do que os apresentados etc. O centro do indivíduo matou a persona. A pessoa ganhou projeção graças a um intenso marketing e ainda mais intensa autoexposição. Nasceram as modernas fábricas de ídolos. Não teriam que ter conteúdo, nem ter escrito o texto, nem tem um cabedal de conhecimentos. Se falassem bonito, se fossem bonitos ou bonitas, eram eles que vendiam e não a mensagem.

Em seu escritos, Joseph Campbell afirma: "Quando o mundo se altera, a religião tem que se transformar". "A função do artista é a mitologização do meio ambiente e do mundo". Na nossa cultura de religião fácil, atingida sem esforços, parece que esquecemos que as três grandes religiões ensinam que as provações da jornada heroica são parte significativa da vida, e que não há recompensa sem renúncia, sem pagar o preço. Na mídia de hoje, é visível a presença intensa de pessoas que são verdadeiros mitos ou até mesmo semideuses. Em muitas Igrejas que hoje atuam intensamente por meio dos veículos que se convencionou chamar de mídia religiosa, há semideuses, gigantes e heróis da fé.

Um fenômeno digno de nota é que alguns deles são mais divulgados pela mídia secular do que pela mídia religiosa. Vendem livros e canções, e isso os qualifica a serem, também, divulgados intensamente por editoras e gravadoras não religiosas. Devem ser ouvidos, porque alguns deles são argutos e sabem o que querem; sabem também o porquê de terem se exposto aos riscos do consumo, que, como o deus Cronos, engole o seu próprio produto. Muitíssimos desses mitos religiosos passam hoje pelas caixas registradoras e se curvam aos poderes do deus Mercado.


Religião e fama

Os religiosos entraram nesse meio. Para chegar a milhões, aceitam "carona" em veículos mais eficientes, pois os da Igreja são lentos demais e pouco abrangentes. O fato é mais do que evidente.

O advento da mídia poderosa que atinge milhões de olhos e ouvidos, certamente milhões a mais do que Jesus atingiu no Seu tempo, trouxe à cena porta-vozes que hoje falam a milhões em seu nome. O pregador midiático de agora fala simultaneamente para milhões de pessoas. Com a mídia poderosa, veio a fé poderosa que até marca dia, hora e lugar do milagre, tanta certeza tem o pregador de que o seu esquema dará certo.

Aqui entra a imagem do pregador midiático de agora. Dos anos de 1940 para cá, com o advento do cinema para multidões, da televisão a partir dos anos de 1960, da internet a partir dos anos 1990, pregar religião para as massas tornou-se terreno de empresários, empreendimento caro e exigente, e para isso as Igrejas precisam de membros capazes de usar a nova linguagem, por ser ele um novo instrumento de mensagem e poder. Mas custa elevadamente mais caro do que manter uma catedral e suas matrizes. A mídia moderna é o novo deus Moloc, ou Pantagruel. Ele como dinheiro. Não há comunicação barata.


Aparece, então, a figura do semideus da fé, que, mais que herói da religião, é porta-voz na linha de frente da evangelização. Ele suscita e levanta fundos. Clama dinheiro. Se acreditar em kenosis, não tocará neste dinheiro. Se acreditar em conforto, puxará o que puder para si mesmo. O discurso será eclesial e comunitário, mas a sua conta no banco mostrará outra práxis.

Alguns deles fundaram emissoras e até igrejas com o auxílio da nova midi, outros se cercaram de figuras envolventes que aceitam e até gostam do brilho dos holofotes. O admirável mundo novo chegou ao púlpito e com ele o admirável brilho novo, que encheu de entusiasmo um grande número de pregadores da fé. Agora, sim, tendo ou não tendo muito o que dizer, poderia dizê-lo a milhões de pessoas; tendo ou não tendo muito que cantar, cantaria para milhões de ouvidos.

Trecho do livro 'Testemunhas digitais'



1 de março de 2017

Por que fazer jejum?

A prática do jejum nos ajuda a estarmos prontos para a renúncia

Não existe uma forma menos "sofrida" de adquirir a virtude da temperança? São João Cassiano (370-435) explica por que é necessário que o corpo sofra um pouco. A razão é muito simples: não é possível cometer o pecado da gula sem a cooperação do corpo. E isso é evidente, já que os anjos, por exemplo, não podem pecar por gula, no sentido próprio da palavra. Ora, se é com o corpo que acontece o pecado, o combate à doença da gastrimargia só pode acontecer caso o corpo entre na luta. Por isso, deve-se fazer jejum. Esses dois vícios [a gula e a luxúria], por não se consumarem sem a participação da carne, exigem, além dos remédios espirituais, a prática da abstinência.

Por que fazer jejum

Não basta o propósito do espírito

Na verdade, para quebrar os seus grilhões, não basta o propósito do espírito (como acontece em relação à ira, à tristeza e às outras paixões que, sem afligir o corpo, a alma sozinha consegue vencer), mas é imprescindível a mortificação corporal pelos jejuns, as vigílias e os trabalhos que levam à contrição, podendo-se acrescentar também a fuga das ocasiões insidiosas. Sendo tais vícios oriundos da colaboração da alma e do corpo, não poderão ser vencidos sem ambos se empenharem nesse processo. Nós, medíocres que somos, não temos a maturidade necessária para a santidade, por isso não seríamos capazes de nos manter em ordem, naquele equilíbrio que "tempera" a vida, sem o auxílio do jejum. Com o jejum somos capazes de rechaçar as incursões hostis da sensualidade e libertar o espírito para que se eleve a regiões mais altas, onde possa ser saciado com os valores que lhes são próprios. É a imagem cristã do homem quem exige esses voos.

Fazer jejum não é passar fome

Devemos estar prontos para a renúncia e a severidade de um caminho que termina com a instauração da pessoa moral completa, livre e dona de si mesma, porque um dever natural nos impulsiona a ser aquilo que devemos ser por definição. Nunca é demais insistir no fato de que o jejum não nasce de corações ressentidos e que odeiam a vida. A Igreja e seus santos sempre reconheceram a bondade fundamental desta vida e dos alimentos que a sustentam. Um santo não é um faquir, e o ideal ascético cristão nunca foi o de deitar numa cama de pregos ou engolir cacos de vidro. Desde o Novo Testamento, a Igreja sempre condenou o "destempero" dos santarrões e das suas seitas. Jejuar não é simplesmente passar fome. Se assim o fosse, a anorexia das modelos seria virtude heroica e os famélicos da história poderiam ser canonizados. Mas a simples fome não santifica ninguém. Para que dê o seu fruto, o jejum deve ser acompanhado de uma atitude espiritual adequada, pois a doença espiritual que desejamos curar é, seja permitida a redundância, espiritual.


A intenção não é detalhe

O pecado não está no alimento, mas no desejo. São Doroteu de Gaza (século VI) explica isso a partir de uma comparação com o casamento. O ato sexual realizado por um devasso pode ser externamente idêntico ao de um esposo, mas sua natureza é completamente diferente. Nos atos humanos, a intenção não é um mero detalhe.

Assim também é na alimentação. O homem sadio e o homem que sofre de gastrimargia podem comer os mesmos alimentos nas mesmas quantidades, mas somente o doente comete idolatria. Quando, diante dos alimentos, nos esquecemos de Deus e começamos a desejar o nosso próprio bem, mais do que a glória de Deus, geramos uma desordem no nosso próprio ser.

(Trechos extraído do livro "Um olhar que cura – Terapia das doenças espirituais" pag. 64 a 69) de Padre Paulo Ricardo)


Fonte: http://formacao.cancaonova.com/liturgia/tempo-liturgico/quaresma/por-que-fazer-jejum/

27 de fevereiro de 2017

Em busca da felicidade

A sede de felicidade foi colocada em nosso coração pelo próprio Deus

Um jovem rico procurou o Filho de um carpinteiro, que não vinha da capital judaica, mas sim da província do norte da Galileia, que era muito pobre. Esse jovem perguntou a Jesus: "Mestre, o que devo fazer para ter a vida eterna, a felicidade, a paz?

Em busca da felicidade
Foto: Daniel Mafra/cancaonova.com

Centenas de jovens vão, todos os meses, da Europa para a Índia. Se você lhes perguntar por que eles estão deixando os países deles para uma terra de tantos miseráveis e desconfortos, eles dirão: "Viemos aqui em busca da paz e felicidade. Diga-nos aonde devemos ir. Queremos ir a uma casa de retiros dos hindus. Diga-nos a que guru devemos procurar".

O jovem rico que buscava incessantemente a felicidade

Era exatamente isso que aquele jovem rico pedia a Jesus. Vocês sabem muito bem a resposta, pois acreditam na Doutrina Católica. O jovem rapaz declarou ao Senhor que, desde que se lembrava, havia tentado ser bastante religioso, acreditava em toda a doutrina da religião e ainda assim era infeliz. Isso é o que muitas pessoas dizem no dia de hoje: "Eu tentei tudo e ainda não sou feliz. Ainda busco a felicidade no meu coração".

Apesar de todo esforço daquele jovem para ser bom e religioso, ele ainda era infeliz. Diz a Palavra: Jesus o amou. Por quê? Por causa da humildade, por ele ter dito que precisava de Deus na vida dele, pois ainda não conseguia encontrar a paz em seu coração.

Nós encontramos muitas pessoas como esse rapaz rico que diz: "Padre, apesar de ter uma casa muito bonita, carro, tudo que o mundo pode lhe oferecer, ainda assim sou muito infeliz".

Cristo disse para aquele jovem rico: Você tentou tudo e ainda assim fracassou. Mas há apenas uma coisa que você precisa fazer: vender tudo o que tem e seguir-me. Ou seja, o Senhor afirmou ao jovem: Largue isso, porque constitui um obstáculo para uma vida feliz e em paz. Ou há alguma coisa que está tomando o lugar de Deus na sua vida?


No caso daquele rapaz, o que estava tomando o lugar de Deus na vida dele era o apego às riquezas. Em nosso caso, pode ser um amigo, que é mais importante para nós do que nossa família; pode ser nosso trabalho, que é mais importante para nós do que ficar em casa. Há na vida de cada um de nós, alguma coisa que nos está bloqueando de chegar mais perto de Deus. Essa coisa que está tomando o lugar do Altíssimo no centro da nossa vida.

Jesus não disse ao jovem que ele tinha uma vida ruim, mas talvez não tinha um bom sistema de valores, visto que criaturas estavam tomando o lugar do Criador na vida dele. É isso que Santo Agostinho dizia: "Oh, Deus, quão maravilhoso Tu és e eu me voltei para criaturas que se tornaram mais importantes do que o Senhor, Deus Todo-poderoso".


Todas as pessoas que vieram até Jesus buscando a felicidade, uma nova vida, Ele não lhes disse: "Você tem de acreditar nessas doutrinas aqui". O que Jesus fala? "Siga-me". O Cristianismo não é só uma questão de obedecer aos mandamentos, cumprir uma doutrina, mas seguir uma Pessoa, seguir Jesus Cristo. Acima de tudo, fazer d'Ele o centro da nossa vida.

Não há limite para Deus fazer milagres na sua vida, basta reconhecer Jesus como único líder religioso do mundo, o qual afirmou: "Eu sou a única verdade, o único caminho, a única vida". Amém!

Padre Rufus Pereira


Fonte: http://formacao.cancaonova.com/atualidade/comportamento/em-busca-da-felicidade/

24 de fevereiro de 2017

O grande valor da comunhão espiritual

A comunhão espiritual é o caminho para as pessoas que não podem recebê-la sacramentalmente na Missa

A comunhão espiritual é um ato de desejo interior, consciencioso e sério, de receber a Sagrada Comunhão e, mais especificamente, de se unir ao Senhor. Ela pode ser feita por palavras ou por pensamentos interiores que nos levam a uma íntima união com Cristo, e Jesus não deixará de nos conceder as suas copiosas bênçãos.
Nos dias de hoje, pode-se fazer, com frequência, a comunhão espiritual como desejo de maior união e intimidade com Deus ao longo dos dias da nossa vida. Ela é e pode ser o único meio de união e intimidade com Deus para quem, por exemplo, não guardou uma hora de jejum eucarístico, vive numa situação de irregularidade perante a Igreja ou pratica outra religião.

Caminho para quem não pode recebê-la na Missa

A comunhão espiritual é o caminho para as pessoas que não podem recebê-la sacramentalmente na Missa, "mas podem recebê-la espriritualmente" na hora santa, ao entrar em uma igreja, quando estiver em casa ou no trabalho, ou nas situações de dificuldade pelas quais se passa na vida. "Senhor, que de Vós jamais me aparte" (Jo 6,35), pois, "Quem come deste pão viverá eternamente" (Jo 6,58).

É bom cultivar o desejo da plena união com Cristo através da prática da comunhão espiritual, recordada por João Paulo II e recomendada por santos mestres de vida espiritual (SC,55). Uma visita ao Santíssimo Sacramento é uma boa oportunidade para se fazer essa comunhão.

Documentos da Igreja

Um dos melhores meios para os divorciados recasados participarem ativamente da comunidade cristã é, segundo o ensinamento da Igreja, a comunhão espiritual.

Que o magistério reconheça a relação entre a graça e a comunhão espiritual que se deduz especialmente do convite que a mesma Igreja faz aos divorciados recasados de unir-se a Cristo pela comunhão espiritual.

Mais ainda: "Os fiéis devem ser ajudados na compreensão mais profunda do valor da participação ao sacrifício de Cristo na Missa, da comunhão espiritual, da oração, da meditação da Palavra de Deus, das obras de caridade e de justiça" (cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Carta aos Bispos,1994, n.6).

"A prática da comunhão espiritual, tão querida à tradição católica, poderia e deveria ser em maior medida promovida e explicada para ajudar os fiéis a melhor se comunicarem sacramentalmente, quer para servir de verdadeiro conforto a quantos não podem receber a comunhão do Corpo e do Sangue de Cristo, quer por várias razões. Pensamos que esta prática ajudaria as pessoas sozinhas, em particular os deficientes, idosos, presos e refugiados. Conhecemos afirmam os bispos do Sínodo – a tristeza de quantos não podem ter acesso à comunhão sacramental devido a uma situação familiar sem conformidade com o mandamento do Senhor (cf. Mt 19, 3-9). Alguns divorciados que voltaram a casar-se aceitam com sofrimento o fato de não poderem receber a comunhão sacramental e oferecem-no a Deus. Outros não compreendem esta restrição e vivem uma frustração interior. Reafirmamos que, mesmo com irregularidade na sua situação (cf. CIC 2384), vocês não estão excluídos da vida da Igreja. Pedimos-lhes que participem na Santa Missa dominical e que se dediquem assiduamente à escuta da Palavra de Deus para que ela possa alimentar a sua vida de fé, caridade e partilha" (Mensagem da XI Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos ao Povo de Deus. Cidade do Vaticano, 21 de outubro de 2005).

A Exortação Apostólica pós-sinodal "Sacramentum caritatis", de 22 de fevereiro de 2007, confirma: "Mesmo quando não for possível abeirar-se da comunhão sacramental, a participação na Santa Missa permanece necessária, válida, significativa e frutuosa; neste caso, é bom cultivar o desejo da plena união com Cristo, por exemplo, através da prática da comunhão espiritual, recordada por João Paulo II (170) e recomendada por santos mestres de vida espiritual" (171) SC,55).

Na teologia

É importante, segundo o padre G. Muraro redescobrir a doutrina do desejo do sacramento – através da comunhão espiritual – para continuar a presença de Jesus na vida dos divorciados. Ele apela ao antigo princípio, segundo o qual o caminho sacramental não esgota todos os caminhos da graça.

O lugar teológico de referência para entender este caminho alternativo se encontra em Santo Tomás, o qual trata da comunhão espiritual.

Segundo a explicação de Santo Tomás, a realidade do sacramento pode ser obtida antes da recepção ritual do mesmo sacramento, somente pelo fato que se desejar recebê-lo (cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologicae, III, q. 80,a, 4).

O valor da comunhão espiritual como caminho extrasacramentário da graça encontra apoio no fato de que a Igreja "com firme confiança, crê que, mesmo aqueles afastatos do mandamento do Senhor e que vivem agora neste estado, poderão obter de Deus a graça da conversão e da salvação se perseverarem na oração, na penitência e na caridade FC 84" (cf. G. Muraro, I divorziati risposati nella comunitá cristiana, Cinisello Balsamo, Paoline,1994 in Sc. Catt. art. cit. 564-565).

Dom Edvaldo, enfatizando o valor e o bem da comunhão espiritual, encoraja os casais em segunda união e os aconselha a fazer esta comunhão na Santa Missa, devidamente dispostos e desejosos de receber o Corpo de Cristo por uma oração sincera. Se sua fé e amor for tão intenso e apaixonado, é possível talvez que eles obtenham maior proveito espiritual do que aqueles que, por rotina e sem piedade alguma, recebem a sagrada hóstia em nossas celebrações sem nenhuma convicção e adequada preparação espiritual.

Pe Luciano Scampini
Sacerdote da paróquia N. S. Aparecida, da Arq. Campo Grande


Fonte: http://formacao.cancaonova.com/igreja/catequese/o-grande-valor-da-comunhao-espiritual/