23 de setembro de 2013

No mundo, sem ser do mundo

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Uma renovada fidelidade na administração dos bens do mundo

"Eu não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do maligno. Eles não são do mundo, como eu não sou do mundo. Consagra-os pela verdade: a tua palavra é a verdade. Assim como tu me enviaste ao mundo, eu também os enviei ao mundo" (Jo 17,15-18). 


Em tempos recentes, o Papa Francisco, continuando um processo iniciado pelo seu predecessor, tem sinalizado com uma série de medidas a realização de reformas administrativas na Igreja. Trata-se de confrontar com o Evangelho, cada dia com maiores exigências, a prática dos cristãos e dos organismos de governo da Igreja. Por outro lado, pelo mundo inteiro cresce a consciência dos valores éticos a serem reconhecidos e respeitados no trato com a coisa pública. Em nosso país, pelo menos, a sensibilidade da sociedade se torna mais aguçada para reagir diante da corrupção e dos desmandos existentes nos vários níveis de poder. Aumentado o escândalo, a vigilância se torna mais atenta.

As parábolas de Jesus são tiradas dos fatos cotidianos ou da natureza para lançar luz sobre os acontecimentos e suscitar novas decisões nas pessoas. No Evangelho de São Lucas, recheado de sensibilidade pelos mais pobres, ganham relevo algumas delas, cuja atualidade se torna um verdadeiro presente de Deus para o nosso tempo. Um administrador ladino (Lc 16, 1-13) deve prestar contas de sua administração e, de acordo com os devedores de seu patrão, oferece-lhes um desconto extra. Hoje, tais acordos são milionários, com dinheiro que atravessa fronteiras para ser "lavado" ou entidades fictícias. E envolvem altas esferas dos poderes das diversas nações do mundo! Sabemos ainda que a esperteza dos interesses econômicos pode até ser justificada em nome do grande valor da paz. Não é de pouca monta o que corre pelo mundo com a fabricação e comercialização de armas. Justamente agora, usando as armas bíblicas da oração e do jejum, na grande convocação feita pelo Papa Francisco, foram desconcertados os poderes do mundo. Ele pediu a verdadeira paz para não acrescentar uma guerra a mais às existentes.


Sua voz ressoou pelo mundo: "É possível percorrer o caminho da paz? Podemos sair desta espiral de dor e de morte? Podemos aprender de novo a caminhar e percorrer o caminho da paz? Invocando a ajuda de Deus, sob o olhar materno da Rainha da paz, quero responder: 'Sim, é possível para todos!' Queria que, de todos os cantos da terra, gritássemos: 'Sim, é possível para todos!' E mais ainda, queria que cada um de nós, desde o menor até o maior, inclusive aqueles que estão chamados a governar as nações, respondesse: 'Sim, queremos!' A minha fé cristã me leva a olhar para a cruz. Como eu queria que, por um momento, todos os homens e mulheres de boa vontade olhassem para a cruz! Na cruz podemos ver a resposta de Deus: ali à violência não se respondeu com violência, à morte não se respondeu com a linguagem da morte. No silêncio da cruz se cala o fragor das armas e fala a linguagem da reconciliação, do perdão, do diálogo, da paz. Queria pedir ao Senhor que nós cristãos e os irmãos de outras religiões, todos os homens e mulheres de boa vontade gritassem com força: 'A violência e a guerra nunca são o caminho da paz!' Que cada um olhe dentro da própria consciência e escute a palavra que diz: sai dos teus interesses que atrofiam o teu coração, supera a indiferença para com o outro que torna o teu coração insensível, vence as tuas razões de morte e abre-te ao diálogo, à reconciliação. Olha a dor do teu irmão. Penso nas crianças, somente nelas. Olha a dor do teu irmão, e não acrescentes mais dor, segura a tua mão, reconstrói a harmonia perdida; e isso não com o confronto, mas com o encontro! Que acabe o barulho das armas! A guerra sempre significa o fracasso da paz, é sempre uma derrota para a humanidade. Ressoem mais uma vez as palavras de Paulo VI: 'Nunca mais uns contra os outros, não mais, nunca mais... Nunca mais a guerra, nunca mais a guerra!' (Discurso às Nações Unidas, 4 de outubro de 1965). 'A paz se afirma somente com a paz; e a paz não separada dos deveres da justiça, mas alimentada pelo próprio sacrifício, pela clemência, pela misericórdia, pela caridade' (Mensagem para o Dia Mundial da Paz, de 1976). Irmãos e irmãs, perdão, diálogo, reconciliação são as palavras da paz: na amada nação síria, no Oriente Médio, em todo o mundo! Rezemos pela reconciliação e pela paz, e nos tornemos todos, em todos os ambientes, homens e mulheres de reconciliação e de paz" (Homilia na Vigília pela paz, no da 7 de setembro de 2013).


O Senhor pede aos cristãos, hoje como ontem, uma renovada fidelidade na administração dos bens do mundo e na procura do progresso e da paz, como consequência da escolha feita no coração de cada um. Um adequado senso de realismo ajudará a perceber os riscos existentes. Como o coração humano pode ser dissimulado e astucioso, vale a vigilância constante, suscitada pela oração, assim como a revisão de vida, a fim de que não se comece pelos centavos para depois chegar aos milhões no uso injusto dos bens da terra. É possível, sim, que a maldade e a corrupção entre nos ambientes da própria Igreja e na prática dos cristãos! É muito fácil acostumar-se ao "todo mundo faz"! Nivelar por baixo o comportamento já trouxe e trará mais ainda muitos desastres. E aos que pretendem cuidar por si dos próprios interesses, as normas de administração aconselham consultorias, que não são outra coisa senão a capacidade de ouvir os outros e levar em conta sua visão mais objetiva. Além disso, transparência é estrada a ser percorrida pelos cristãos presentes em qualquer campo da sociedade. E ela só faz bem!

Podemos acolher o Evangelho para estar no mundo sem ser ou se contaminar com o mundo, por meio de recomendações precisas e límpidas: "Quem é fiel nas pequenas coisas será fiel também nas grandes, e quem é injusto nas pequenas será injusto também nas grandes. Por isso, se não sois fiéis no uso do 'dinheiro iníquo', quem vos confiará o verdadeiro bem? E se não sois fiéis no que é dos outros, quem vos dará aquilo que é vosso? Ninguém pode servir a dois senhores. Pois vai odiar a um e amar o outro, ou se apegar a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro" (Lc 16, 10-13). É tarefa para uma vida inteira! Para alcançar tais objetivos, "que se façam súplicas, orações, intercessões, ação de graças, por todas as pessoas, pelos reis e pelas autoridades em geral, para que possamos levar uma vida calma e tranquila, com toda a piedade e dignidade. Isto é bom e agradável a Deus, nosso Salvador" (1 Tm 2, 1-2).

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Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo de Belém - PA

Dom Alberto Taveira foi Reitor do Seminário Provincial Coração Eucarístico de Jesus em Belo Horizonte. Na Arquidiocese de Belo Horizonte foi ainda vigário Episcopal para a Pastoral e Professor de Liturgia na PUC-MG. Em Brasília, assumiu a coordenação do Vicariato Sul da Arquidiocese, além das diversas atividades de Bispo Auxiliar, entre outras. No dia 30 de dezembro de 2009, foi nomeado Arcebispo da Arquidiocese de Belém - PA.

20 de setembro de 2013

Deus o abençoe!

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Seja um portador da bondade de Deus aos outros

Ao lembrar de meus queridos pais, de nossa casa lá em Sarandira, distrito de Juiz de Fora (MG) - onde eu nasci e fui criado -, a primeira recordação que vem à minha mente é aquele ensinamento basilar de meus queridos pais: "Bênção, papai"; "Bênção, mamãe". Assim, eu fui criado num ambiente abençoado, de verdadeiro respeito e veneração por meus pais, avós, tios e familiares. Abençoado, porque tomava a bênção diária de meus pais para dormir, ao acordar, ao sair para os estudos ou para o trabalho. Em tudo nós éramos muito abençoados pelos nossos pais. Falo não só de mim, mas de todos os meus irmãos, os quais receberam a mesma educação e a mesma bênção que até hoje sentimos nos acompanhar.


Quando nós damos a bênção ou a recebemos, somos portadores da bondade, da clemência e da misericórdia divina. Diz o ditado que "a boca fala do que o coração está cheio". Se o nosso coração está cheio e é portador de bênção, seremos sempre pessoas abençoadas pelo Deus Uno e Trino. Conforme fazemos o sinal da cruz na fronte, somos protegidos dos maus pensamentos. Ao fazer o sinal da cruz sobre o peito, somos protegidos dos maus sentimentos. E ao fazer, por fim, o sinal da cruz nos ombros, somos protegidos em nosso agir cristão. 


Falo do costume de pedir a bênção aos pais, aos avós, aos tios, aos padrinhos, ao bispo e ao sacerdote, porque vejo, infelizmente, que no mundo agitado em que vivemos estamos perdendo as bonitas tradições que nos foram legadas pela nossa fé, e estamos perdendo a chance de sermos abençoados pelo Deus Uno e Trino.


Os pais que abençoam os seus filhos são também abençoados. Ela vai e volta. Por isso, quem vive sob a bênção divina é uma pessoa abençoada.

Que bom seria que nossos novos casais também passassem a abençoar os seus filhos como nossos pais nos abençoaram no passado!

Devemos dar a bênção aos nossos amigos. Nas despedidas, devemos dizer: "Que Deus o acompanhe"; "Que Deus o guarde"; "Vá com Deus, que Ele o abençoe"; todas essas manifestações são de nossa religiosidade e da nossa fé, e não devemos ter vergonha de proclamá-las.

O poder da palavra "bênção" é muito rico! Diz que a "bênção é um substantivo feminino que significa: s. f. 1. Expressão ou gesto com que se abençoa; 2. [Religião católica] Sinal da Cruz feito sobre o que se benze. 3. [Figurado] Benefício, graça, favor especial".

Por isso, vamos ensinar aos nossos filhos e amigos o poder da bênção de Deus e a grandeza de nós, como batizados, podermos também fazer chegar essa consoladora bênção ao maior número possível de pessoas.

Deus o abençoe sempre!


Dom Eurico dos Santos Veloso
Arcebispo Emérito de Juiz de Fora (MG)

18 de setembro de 2013

A vitória da Igreja

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De todas as perseguições ela saiu purificada e engrandecida

Nosso Senhor Jesus Cristo nunca perde batalhas: "No mundo tereis tribulações; mas confiai, Eu venci o mundo" (Jo 16,23), declarava o Senhor às vésperas da Sua aparente derrota na cruz. E a sua promessa estende-se à Igreja que fundou: "As portas do inferno não prevalecerão contra ela" (Mt 16,18).


De todas as perseguições, a Igreja saiu purificada e engrandecida, de todas as falsidades ela triunfou. Enquanto os anticristos ruíam por si mesmos ao longo destes vinte séculos, a Igreja lhes sobrevivia.


Georges Chevrot, na sua obra "Simão Pedro", tem umas palavras que merecem reproduzir-se aqui: "Já em tempos de Santo Agostinho de Hipona os inimigos da Igreja declaravam: 'A Igreja vai morrer, os cristãos tiveram a sua época'. Ao que o bispo de Hipona respondia: 'No entanto, são eles que morrem todos os dias e a Igreja continua de pé, anunciando o poder de Deus às gerações que se sucedem'.


'Vinte anos mais – dizia o infeliz filósofo francês Voltaire -, e a Igreja Católica terá acabado...' Vinte anos depois, Voltaire morria e a Igreja católica continuava a viver. [...]


Assim, desde Celso, no século III, não houve uma única geração em que os coveiros não se preparassem para sepultar a Igreja; e a Igreja vive. O notável escritor Charles Forbes René de Tryon, conde de Montalember dizia-o magnificamente, em 1845, na Câmara dos Pares: 'Apesar de todos os que a caluniam, subjugam ou atraiçoam, a Igreja Católica tem há dezoito séculos uma vitória e uma vingança asseguradas: a sua vingança é orar por eles; a sua vitória, sobreviver-lhe'".


Mesmo o doloroso espetáculo dos mártires não deve desanimar-nos, antes o seu exemplo deve servir-nos de estímulo e orientação. Martírio significa "testemunho" e, na verdade, trata-se do máximo testemunho da fé; e por isso o Senhor associou a ele as mais sentidas promessas de glorificação e fecundidade.

Referindo- se aos mártires deste século que acaba de passar, João Paulo II dizia: "A Igreja encontrou sempre, nos seus mártires, uma semente de vida". Sanguis martyrum, sêmen Christiano-rum (Tertuliano, Apologeticum 50, 13: PL 1, 534): esta célebre (lei) enunciada por Tertuliano, sujeita à prova da História, sempre se mostrou verdadeira. Por que não haveria de sê-lo também no século e milênio que começamos? Talvez estivéssemos um pouco habituados a ver os mártires de longe, como se tratasse de uma categoria do passado associado especialmente com os primeiros séculos da era cristã. A comemoração jubilar descerrou-nos um cenário surpreendente, mostrando o nosso tempo particularmente rico de testemunhas, que souberam, ora de um modo, ora de outro, viver o Evangelho em situações de hostilidade e perseguição, até darem muitas vezes a prova suprema do sangue".

 

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Padre Inácio José do Vale
pe.inacio.jose@gmail.com

 

Padre Inácio José do Vale é professor de História da Igreja no Instituto de Teologia Bento XVI (Cachoeira Paulista). Também é sociólogo em Ciência da Religião.

17 de setembro de 2013

A caridade segundo São João Crisóstomo

16 de setembro de 2013

A festa da misericórdia

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Filhos reencontrados e revalorizados

"A misericórdia apresentada por Cristo, na parábola do filho pródigo, tem a característica interior do amor, que no Novo Testamento é chamado 'ágape'. Este amor é capaz de debruçar-se sobre todos os filhos pródigos, sobre qualquer miséria humana e, especialmente, sobre toda miséria moral, sobre o pecado. Quando isto acontece, aquele que é objeto da misericórdia não se sente humilhado, mas como que reencontrado e revalorizado.


O pai manifesta-lhe alegria, antes de mais por ele ter sido reencontrado e por ter voltado à vida. Esta alegria indica um bem que não foi destruído: o filho, embora pródigo, não deixa de ser realmente filho de seu pai. Indica ainda um bem reencontrado: no caso do filho pródigo, o regresso à verdade sobre si próprio" (Cf. João Paulo II, Encíclica Dives in misericordia, 6).


"Na parábola do filho pródigo não é usado, nem uma vez sequer, o termo «justiça», assim como também não é usado no texto original, o termo «misericórdia». Contudo, a relação da justiça com o amor que se manifesta como misericórdia aparece profundamente vincada no conteúdo desta parábola evangélica. Torna-se claro que o amor se transforma em misericórdia quando é preciso ir além da norma exata da justiça: norma precisa mas, por vezes, demasiado rigorosa" (Dives in misericordia, 5).


Trata-se de uma verdadeira revolução nos relacionamentos sociais. Muito além das aparências, vale a realidade do filho amado.

O desafio está lançado, para que a convivência humana supere os limites frios do direito e da justiça. Só em Cristo - e com Ele - começará a festa da misericórdia.

 

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Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo de Belém - PA

Dom Alberto Taveira foi Reitor do Seminário Provincial Coração Eucarístico de Jesus em Belo Horizonte. Na Arquidiocese de Belo Horizonte foi ainda vigário Episcopal para a Pastoral e Professor de Liturgia na PUC-MG. Em Brasília, assumiu a coordenação do Vicariato Sul da Arquidiocese, além das diversas atividades de Bispo Auxiliar, entre outras. No dia 30 de dezembro de 2009, foi nomeado Arcebispo da Arquidiocese de Belém - PA.

13 de setembro de 2013

Bem aventuranças

Escrito por JCS   

Bem aventurados os pobres,
Não por sê-lo ou por acomodar-se à pobreza,
Mas porque nela e através dela
Colocam sua confiança no grande tesouro
Que se esconde para além das honras e riquezas materiais,
Coisas que aprisionam o coração e a alma,
E que são corroídas pela traça e facilmente roubadas. 

Bem aventurados os que choram,
Não porque o pranto seja sinônimo de felicidade,
Mas porque cada lágrima, dolorida e salgada,
Traz consigo justamente o sal da sabedoria,
Acumulado pela provação e pela experiência,
O qual faz relativizar o que é secundário
E ater-se àquilo que é absoluto e eterno.

Bem aventurados os mansos,
Não porque a tudo se submetem sem resistência,
Mas porque têm consciência que o tempo e o silêncio
São os melhores conselheiros na aflição,
E sabem também que qualquer ação, no momento certo,
Vem acompanhada pela mão de Deus.

Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça,
Não pela fome e sede em si mesmas,
Mas porque interpelam a ordem vigente e seus detentores,
Abrindo o horizonte da história ao futuro
E à promessa da Terra Prometida ou do Reino de Deus.

Bem aventurados os misericordiosos,
Não porque fecham os olhos à injustiça e ao pecado,
Mas porque os abrem em uma nova direção,
Uma aurora iluminada pelo dom do perdão,
Em que todos terão vida em plenitude.

Bem aventurados os puros de coração,
Não porque são ingênuos diante do mal que os cerca,
Mas porque na transparência do olhar e das palavras
São capazes de "ver" o que Deus tem reservado
Para aqueles que o procuram com sinceridade.

Bem aventurados os que buscam a paz,
Não porque ignoram as tensões, conflitos e tiranias,
Mas porque, embora cientes de todos essas contradições,
Também o são de que o caminho da guerra
Só faz crescer a espiral daninha da violência.

Bem aventurados os que são perseguidos por causa da justiça,
Não porque a perseguição seja um troféu e uma vitória,
Mas porque, não raro, representa o resultado
De quem é capaz de acender uma luz na noite escura,
Apesar de saber que o mundo prefere as trevas.

Fonte: Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS – Roma, 11 de setembro de 2013

12 de setembro de 2013

Como nos aproximarmos da Palavra de Deus?

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É necessário criar vínculo com a Palavra

Conta-se que o Imperador alemão Frederico II (+ 1250) quis saber qual era a primeira língua do mundo, aquele que utilizavam Adão e Eva no jardim do Éden. Como acreditava que todas as línguas são aprendidas por imitação, escolheu doze recém-nascidos para que fossem criados isoladamente, sem que ninguém lhes dirigisse uma palavra sequer. Deste modo, segundo o Imperador, se ninguém falasse com eles, não poderiam aprender a língua dos seus cuidadores, e o idioma "original" brotaria espontaneamente de seus lábios. Assim se fez. Os bebês eram cuidados, mas ninguém podia dirigir alguma palavra próximo a eles. O resultado foi que, gradativamente, os bebês foram morrendo um a um. Por quê? Porque lhes faltou a palavra.


Dar a palavra a alguém significa entrar em contato com essa pessoa, criar vínculos, fazer com que o outro participe de nossa própria interioridade.

Quando uma pessoa fica ferida por outra, costuma negar a esta sua palavra, e, embora esta não seja uma atitude cristã - pois o perdão que o Senhor pede que manifestemos nos leva a não excluir a ninguém do nosso amor -, tal gesto nos indica o peso que há no "dar a palavra". 


Quando alguém nos pede que creiamos no que diz, costuma afirmar que "dá sua palavra".


Essas breves considerações antropológicas nos ajudam a perceber o modo como Deus escolheu agir entre nós. Ele nos deu Sua Palavra. Cristo é a Palavra que se fez carne e habitou entre nós. Sua Palavra permite que conheçamos a intimidade da vida divina, cria vínculo com quem A recebe. Ele "deu Sua Palavra" para que nós acreditássemos que Ele é a verdade, para que participássemos de sua vida. Deus, com toda a força que implica este verbo, entregou Sua Palavra por nós até o extremo.

Vivemos num mundo no qual a palavra praticamente não tem valor. Estão em toda parte: nas "timelines" frenéticas de nossas redes sociais, nos anúncios publicitários, nos abundantes discursos dos políticos, dos "profissionais da fé", e daqueles que procuram oferecer uma solução mágica para toda espécie de problemas. São tantas palavras que terminamos praticamente por desprezá-las, pensando: "não são mais que palavras".

Um grande risco para nós seria permitir que esse clima de desvalorização da palavra permeasse a nossa relação com a Palavra feita carne. O acostumar-se com a Palavra de Deus, o pensar que já a conhecemos suficientemente, impediria a abertura necessária para que Ele possa comunicar-se conosco. Seríamos como aqueles bebês da lenda, que morreram, neste caso, não por não ouvirmos uma palavra, mas por tornar-nos impermeáveis a ela.

Estamos diante de uma Palavra que, embora próxima, não pode ser costumeira. Nossa atitude diante dela deve ser a mesma de Moisés no Horeb. Tirar as sandálias dos pés, sandálias empoeiradas pela rotina, para aproximarmo-nos com a expectativa de receber a eterna novidade de Deus.

 

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Padre Demétrio Gomes
@pedemetrio
Diretor espiritual do Seminário São José de Niterói, e chanceler do Arcebispado da Arquidiocese de Niterói. Vigário Judicial Adjunto e Juiz do Tribunal Interdiocesano de Niterói. Professor do Instituto Filosófico e Teológico do Seminário São José. Está cursando o mestrado de Direito Canônico no Pontifício Instituto Superior de Direito Canônico do Rio de Janeiro, agregado à Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Presidente da Organização dos Seminários e Institutos do Brasil para o Regional Leste 1 da CNBB. Membro da Sociedade Brasileira de Canonistas (SBC). Administra também o website Presbíteros para a formação do clero católico.