12 de setembro de 2013

Como nos aproximarmos da Palavra de Deus?

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É necessário criar vínculo com a Palavra

Conta-se que o Imperador alemão Frederico II (+ 1250) quis saber qual era a primeira língua do mundo, aquele que utilizavam Adão e Eva no jardim do Éden. Como acreditava que todas as línguas são aprendidas por imitação, escolheu doze recém-nascidos para que fossem criados isoladamente, sem que ninguém lhes dirigisse uma palavra sequer. Deste modo, segundo o Imperador, se ninguém falasse com eles, não poderiam aprender a língua dos seus cuidadores, e o idioma "original" brotaria espontaneamente de seus lábios. Assim se fez. Os bebês eram cuidados, mas ninguém podia dirigir alguma palavra próximo a eles. O resultado foi que, gradativamente, os bebês foram morrendo um a um. Por quê? Porque lhes faltou a palavra.


Dar a palavra a alguém significa entrar em contato com essa pessoa, criar vínculos, fazer com que o outro participe de nossa própria interioridade.

Quando uma pessoa fica ferida por outra, costuma negar a esta sua palavra, e, embora esta não seja uma atitude cristã - pois o perdão que o Senhor pede que manifestemos nos leva a não excluir a ninguém do nosso amor -, tal gesto nos indica o peso que há no "dar a palavra". 


Quando alguém nos pede que creiamos no que diz, costuma afirmar que "dá sua palavra".


Essas breves considerações antropológicas nos ajudam a perceber o modo como Deus escolheu agir entre nós. Ele nos deu Sua Palavra. Cristo é a Palavra que se fez carne e habitou entre nós. Sua Palavra permite que conheçamos a intimidade da vida divina, cria vínculo com quem A recebe. Ele "deu Sua Palavra" para que nós acreditássemos que Ele é a verdade, para que participássemos de sua vida. Deus, com toda a força que implica este verbo, entregou Sua Palavra por nós até o extremo.

Vivemos num mundo no qual a palavra praticamente não tem valor. Estão em toda parte: nas "timelines" frenéticas de nossas redes sociais, nos anúncios publicitários, nos abundantes discursos dos políticos, dos "profissionais da fé", e daqueles que procuram oferecer uma solução mágica para toda espécie de problemas. São tantas palavras que terminamos praticamente por desprezá-las, pensando: "não são mais que palavras".

Um grande risco para nós seria permitir que esse clima de desvalorização da palavra permeasse a nossa relação com a Palavra feita carne. O acostumar-se com a Palavra de Deus, o pensar que já a conhecemos suficientemente, impediria a abertura necessária para que Ele possa comunicar-se conosco. Seríamos como aqueles bebês da lenda, que morreram, neste caso, não por não ouvirmos uma palavra, mas por tornar-nos impermeáveis a ela.

Estamos diante de uma Palavra que, embora próxima, não pode ser costumeira. Nossa atitude diante dela deve ser a mesma de Moisés no Horeb. Tirar as sandálias dos pés, sandálias empoeiradas pela rotina, para aproximarmo-nos com a expectativa de receber a eterna novidade de Deus.

 

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Padre Demétrio Gomes
@pedemetrio
Diretor espiritual do Seminário São José de Niterói, e chanceler do Arcebispado da Arquidiocese de Niterói. Vigário Judicial Adjunto e Juiz do Tribunal Interdiocesano de Niterói. Professor do Instituto Filosófico e Teológico do Seminário São José. Está cursando o mestrado de Direito Canônico no Pontifício Instituto Superior de Direito Canônico do Rio de Janeiro, agregado à Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Presidente da Organização dos Seminários e Institutos do Brasil para o Regional Leste 1 da CNBB. Membro da Sociedade Brasileira de Canonistas (SBC). Administra também o website Presbíteros para a formação do clero católico.

10 de setembro de 2013

Tenha a coragem de enfrentar os seus medos

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Se o medo vencer, acabará asfixiando a fé

"Até mesmo os cabelos de vossa cabeça estão todos contados. Não tenhais medo! Vós valeis mais do que muitos pardais" (Lc 12,7).


Dizem que, na Bíblia, a expressão "não tenhais medo" está escrita 365 vezes. Isso significa que para cada dia no ano temos de nos lembrar de que podemos vencer esse inimigo.

Mesmo que esta conta não seja exata, o certo é que, nesse duelo "medo x você", Deus quer fazer de você um vencedor. O Senhor não vai lutar por você, mas, com certeza, lutará com você. Não sei se percebeu, mas você já está na arena da vida, a luta já vai começar. Resta saber quem vai vencer: você ou o seu medo.

Existem muitos tipos de medos: medo do passado, do presente, do futuro; medo de pessoas de dentro de casa, medo de pessoas de fora; medo de solidão, de multidão; medo de morrer, de viver; medo de homem, de mulher. Existem pessoas que têm medo de quem está vivo, outras de quem está morto.

Alguns com medo da traição, outros da paixão; outros com medo do perdão (dar ou receber); alguns com medo de falar, outros com medo de calar; alguns com medo do conhecido, outros do desconhecido. Enfim, são muitos tipos de temor e escrever uma lista de todos seria, talvez, algo quase impossível. 


Certa vez, ouvi padre Rufus Pereira dizer que o demônio é o "deus do medo" e que esse sentimento é como um louvor aos infernos: quanto mais uma pessoa o alimenta, tanto mais força tem o demônio de fazer mal a ela. Medo e fé são como água e óleo: não se misturam. Ou uma pessoa tem fé ou tem medo. Se o medo vencer, acabará asfixiando a fé.


O temor, na maioria das vezes, surge da nossa imaginação (como Santa Teresa dizia: "A imaginação é a louca da casa"); por isso, muitas vezes, o medo é como um manipulador, um "cara bom de papo" ou até um ilusionista, que o faz ver o que não existe, acreditar no que não é verdade e assustar-se com fantasmas que já foram sepultados, mas que ele insiste em dizer que estão vivos.

Na grande arena da vida, os ponteiros da decisão apontam a hora de enfrentar os seus medos, não de mãos vazias, mas com "as armas da fé" (cf. Rm 13,12). Não se esqueça também de que todo lutador tem sempre um técnico que lhe diz o que fazer. O seu é Jesus, Aquele que lhe diz: "Não tenhas medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do vosso Pai dar a vós o Reino" (Lc 12,32).

Quem não tiver coragem de enfrentar os seus medos nunca descobrirá que é maior do que eles, não importa o nome que tenham; você não pode mais lutar de costas, essa é a posição do pânico, dos covardes, dos derrotados. Na luta entre o medo e você, creia que o cinturão da vitória é seu.


Padre Sóstenes Vieira
Comunidade Canção Nova

9 de setembro de 2013

A Bíblia e a primavera

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Deus se revela ao homem

O mês de setembro chega trazendo a primavera ao nosso hemisfério e, junto com a beleza do tempo, o tema da Sagrada Escritura. O fato de celebrarmos, no dia 30 de setembro, o dia do patrono dos estudos bíblicos, São Jerônimo, fez com que pudéssemos aprofundar esse tema durante este período. Setembro é o mês da Bíblia, sendo que, no último domingo, comemora-se o Dia Nacional da Bíblia.


A leitura orante da Bíblia ou a lectio divina aos poucos vai entrando na realidade de nosso povo, que passa a colocar a Palavra de Deus como início da reflexão que vai iluminar a realidade das pessoas. São passos que, pouco a pouco, os grupos e comunidades começam a dar, sempre em torno da Sagrada Escritura. Ela nos traz a revelação de Deus para a nossa salvação.

Na Sua misericórdia e sabedoria, quis Deus revelar-se a si mesmo a nós na pessoa de Cristo e pela unção do Espírito Santo para que tivéssemos acesso a Ele e participássemos de Sua glória.

Deus se revela ao homem e o convida a partir para uma terra desconhecida que lhe seria mostrada. Nessa caminhada, o Senhor vai se mostrando, revelando-se aos que creem e, quando é chegado o tempo, a revelação se completa em Cristo, a Palavra de Deus: "No principio era a Palavra e a Palavra estava em Deus, e a Palavra era Deus... E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós" (Jo 1,1.14). 


Por Cristo, somos glorificados! E todos nós que recebemos a Palavra e nela acreditamos, tornamo-nos filhos de Deus. Esse caminho Deus faz conosco. Respeita o nosso crescimento intelectual e volitivo, seja na nossa capacidade pessoal, seja na evolução cultural do grupamento humano, de tal forma que podemos sentir em nós mesmos a caminhada do povo de Deus.


À medida que nos abrimos à fé, partimos com Ele nos momentos de contemplação, de glória e, também, como as Escrituras nos mostram, nas traições, quando renunciamos a seu amor e vamos atrás dos "baals" de todos os tempos. Ouvindo a voz penitencial dos profetas, retornamos da "Babilônia" do pecado, que existe em todos os tempos e, também, no íntimo de nós.

Na bondade de Deus, como um resto, voltamos a "Sião", sempre aguardando a plena revelação de Deus no Seu Filho, que nos salva por Sua morte e nos dá o Seu Espírito para que anunciemos em nós e em toda terra a Sua ressurreição e nossa participação no mistério trinitário de Deus.

A Bíblia Sagrada, com toda a Tradição da Igreja, em seguimento à Palavra de Cristo revela ao nosso coração este plano divino para a humanidade – restaurar tudo em Cristo – e nos envia: "Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda a criatura. Aquele que crê e for batizado será salvo; o que não crer será condenado" (Mc 16,15-16).

A Bíblia é o relato da manifestação do amor de Deus que, gradativamente, nos leva por Cristo, em Cristo e com Cristo à intimidade da vida divina e, como consequência, a uma nova vida, fermento de um mundo novo.

Somos o povo que se encontra com a Palavra Viva, o Verbo Eterno, Jesus Cristo! Ele é a nossa vida e o caminho que nos conduz ao Pai. Eis um tempo favorável para aprofundarmos a importância de ser discípulos missionários à luz do Evangelho, procurando em nossos grupos de reflexão deixar a Palavra falar ao nosso coração e nos fazer renovados em Cristo.

A Primavera está associada à Pascoa: a certeza da vida que vence a morte! Que o mês da Bíblia, recém-iniciado, seja uma nova primavera: a certeza da vida que renasce e se abre, vencendo a morte e o pecado.

 

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Dom Orani João Tempesta, O. Cist

Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro (RJ)

6 de setembro de 2013

Escolher Deus

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Tenha a coragem de refazer suas opções de vida

"Grandes multidões acompanhavam Jesus. Voltando-se, ele lhes disse: 'Se alguém vem a mim, mas não me prefere a seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs, e até à sua própria vida, não pode ser meu discípulo. Quem não carrega sua cruz e não caminha após mim, não pode ser meu discípulo... Qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo!'" (Lc 14,25-27.33). 


Não só alguns privilegiados ou mais corajosos e até heróis, todos serão postos diante da escolha a ser feita como resposta de amor a quem nos escolheu, concedeu-nos o presente da vida, da liberdade e do caminho de realização e felicidade. Mas é possível passar a vida inteira nesta terra sem fazer esta opção fundamental da existência, escolhendo migalhas, quando fomos feitos para a plenitude de Deus e com Deus, que não exclui a convivência com as outras pessoas e o valor a ser atribuído a tudo o que Ele fez. Afinal, Ele viu que tudo era bom!

Quando não se faz essa escolha, a vida parece uma construção mal planejada e realizada. "De fato, se algum de vós quer construir uma torre, não se senta primeiro para calcular os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso contrário, ele vai pôr o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os que virem isso começarão a zombar: 'Este homem começou a construir e não foi capaz de acabar!'" (Lc 14,28-30). As frustrações não são necessariamente resultados das eventuais falhas no processo de edificação da existência, mas da falta de clareza nos objetivos a serem alcançados. A zombaria pode vir de dentro ou de fora! É que a nota baixa dada pela própria pessoa costuma tornar-se um espectro que acompanha anos e anos de uma vida. 


A "batalha" da vida pode ainda ser semelhante a "um rei que sai à guerra contra outro. Ele não se senta primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil? Se ele vê que não pode, envia uma delegação, enquanto o outro ainda está longe, para negociar as condições de paz". Jesus entende de vida e propõe pequenas parábolas cuja atualidade atravessa os séculos. Escolher Deus como tudo da existência é condição indispensável. Quem não o faz, escolhe os afetos passageiros, apega-se a pessoas, cargos, dinheiro, posição social, cria apenas grupelhos de apoio aos próprios caprichos. Qualquer crítica ou incompreensão, ou quem sabe as dificuldades profissionais, tudo derruba o que milita na vida apenas por si mesmo.


Vem também de Nosso Senhor uma comparação oportuna: "O sal é bom. Mas se até o sal perder o sabor, com que se há de salgar? Não serve nem para a terra, nem para o esterco, mas só para ser jogado fora. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça" (Lc 14,35). Volta-se para nós, cristãos, a exigente Palavra de Jesus! Ou somos aquilo que corresponde à nossa vocação ou então não serviremos para nada, nem para adubo! Que a pequena parábola nos ponha numa crise fecunda, para que não falte ao mundo a presença de quem foi chamado a ser sal, luz e fermento do Reino de Deus.

Se acontecer esta escolha de Deus, os afetos valerão sim, porém, a meta e o coração serão castos, sem resquícios de antipatia ou simpatia. O esposo ou a esposa serão respeitados em seu mistério, pois ninguém é feito para ser propriedade de outra pessoa. A edificação da existência levará em conta as outras pessoas, mais ainda, levará a buscar o bem dos outros. Se Deus é amado acima de todas as coisas, estas terão sua importância, sem exageros! Os bens materiais serão buscados e, ao mesmo tempo, compartilhados. Quem fizer a opção por Deus não temerá os desafios, as crises ou perseguições. Sabendo o que escolheu, a pessoa assim amadurecida terá a necessária serenidade para buscar novos caminhos, procurará orientação e apoio em quem pode ouvir, aconselhar e acompanhar. Esta é uma forma para entender os chamados "conselhos evangélicos" da castidade, pobreza e obediência, proclamados por Jesus para todos os Seus discípulos.

Certamente, as propostas aqui oferecidas perecerão utópicas para muitas pessoas, mas é justamente a serviço do Reino de Deus que nos colocamos como cristãos. Quem tiver a coragem de refazer, à luz do Evangelho, suas opções de vida, experimentará que um mundo diferente e novo é possível. Só que precisa começar aqui, dentro do mais íntimo do coração e das escolhas de cada homem e cada mulher, discípulos de Jesus Cristo, que aguarda a todos como missionários do Reino de Deus.

 

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Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo de Belém - PA

Dom Alberto Taveira foi Reitor do Seminário Provincial Coração Eucarístico de Jesus em Belo Horizonte. Na Arquidiocese de Belo Horizonte foi ainda vigário Episcopal para a Pastoral e Professor de Liturgia na PUC-MG. Em Brasília, assumiu a coordenação do Vicariato Sul da Arquidiocese, além das diversas atividades de Bispo Auxiliar, entre outras. No dia 30 de dezembro de 2009, foi nomeado Arcebispo da Arquidiocese de Belém - PA.

5 de setembro de 2013

Carisma Vicentino no Ser e Agir de Frederico Ozanam

Teodoro Martín, CM
Escrito por JCS   

 

 

O tema "carisma vicentino no ser e agir" de Frederico Ozanam tem por objetivo ampliar o conhecimento dentro da Família Vicentina daquele que foi um dos que melhor compreendeu e viveu tudo o que S. Vicente de Paulo foi e tudo o que este santo deixou para a posteridade através de suas obras. O tema foi escolhido para a apresentação dentro de uma assembleia da Família Vicentina, onde predominantemente, temos muita representação dos leigos. O tema auxilia o conhecimento de nossa identidade vista através de um leigo, Frederico Ozanam, que segundo historiadores, foi um dos que melhor compreendeu a espiritualidade vicentina refletida no apostolado dos leigos.

Quando falamos de CARISMA, instintivamente recordamos o que São Paulo diz na carta aos Coríntios, capítulo 12, onde o apóstolo nos lembra de que o carisma é "um dom do Espírito de Deus em benefício da comunidade". É algo dado em função de uma obrigação social. Os carismas constituem a dinâmica da Igreja: A igreja vive e se desenvolve através do que cada fiel atribui como dom de Deus. Cada qual deve respeitar e aceitar o que os demais atribuem, e reconhecer em seus próprios dons uma "vocação", ou seja, um chamado ao serviço. A diversidade de carismas faz com que a Igreja seja uma realidade pluralista e viva – cada um atribui algo peculiar e novo – porém sem que se perca a unidade fundamental: todos procedem do mesmo espírito.

Nosso carisma, nossa vocação, foi mostrado por Vicente de Paulo e foi transmitido por um leigo, Frederico Ozanam. Os confrades e consócias das conferências vicentinas enxergam sua vocação através da vocação de Frederico Ozanam que por sua vez viu sua vocação através da espiritualidade de Vicente de Paulo. Vejamos como o fundador das conferências vicentinas direcionou sua vida a exemplo do Espírito de Deus, compreendido na Divina Providência.

Desde sua adolescência, Frederico Ozanam considerou o descobrimento de sua vocação como o ponto chave de sua vida. Sabia perfeitamente que ao fazer esta descoberta e fazê-la bem feita, dela dependeria toda sua vida. Sabia também que descobrir sua própria vocação não era uma mera consulta pessoal sobre o que queria ser, mas confrontar para ver se era o que Deus queria que fosse, já que a vocação é um chamado. Por isso Frederico Ozanam rezou, refletiu profundamente e buscou garantias para discernir estes carismas que Deus lhe havia confiado para direcioná-los e realizá-los no seguimento a uma vocação, onde a Providência Divina o havia escolhido como cooperador de seu desígnio de salvação universal.

Através de suas cartas sabemos que aspectos gerais de sua vocação o encaminharam com decisão e firmeza como jovem estudante em Paris. Desde sua juventude considerou o essencial da vocação como um chamado a uma vivência peculiar do evangelho em circunstâncias concretas de profissão de fé e estado de vida. Cristo se revela com toda sua perfeição. E esta vocação caritativa Frederico Ozanam a viveu e quis que vivessem as conferências de espírito vicentino. Por isso, as conferências vicentinas adotaram desde o princípio São Vicente de Paulo como seu patrono. "Radicalmente vicentino foi também nos caminhos concretos escolhidos para exercer a caridade, como a visita aos Pobres em sua casa, como fizeram desde o início as Filhas da Caridade, e as mulheres e homens das conferencias vicentinas; até sua visão global de caridade como a obra de devolver a dignidade ao Pobre, que se preocupava com seu corpo e espírito, que abraçava toda e qualquer iniciativa, desde uma esmola pessoal até a criação de institutos para a educação humana e profissional dos Pobres. Em definitivo, como Vicente de Paulo, através do serviço corporal e espiritual ao Pobre, Frederico Ozanam tinha um objetivo mais além: a restauração cristã da sociedade" (J. M. Román).

Um terceiro elemento de sua vivência pessoal do evangelho está centrado na contemplação de si mesmo como um simples cristão, ou seja, um cristão na sua condição laical. O ideal de ação que se propõe é notadamente laical e isto foi decisivo para manter o caráter laical da Sociedade de caridade que fundou: "queremos que seja profundamente católica sem deixar de ser leiga".  Conhecendo o seu modo de pensar, reconhecemos o seu pensamento nas palavras que foram ditas bem mais tarde pelo Papa João Paulo II quando diz: "A caridade para com o próximo, nas expressões antigas e sempre novas das obras de misericórdia corporais e espirituais, representa o conteúdo mais imediato, comum e habitual da animação cristã da ordem temporal que constitui o empenho específico dos fiéis leigos" (Christifideles Laici, 414 – 30 de dezembro de 1988).

Aquele caráter de Igreja laical que ele assumiu em sua vida de simples cristão, fez dele um "missionário da fé no mundo da ciência, e missionário da fé no seio da sociedade; eis aí o que pouco a pouco Frederico Ozanam quis ser e que brilhantemente chegou a ser" (G. Goyau, Livro do Centenário - p. 3-4).

"Se por sua vocação, Frederico Ozanam viveu antecipadamente o ideal que a teologia atual assinala como próprio do leigo cristão: ser, sem abandonar as tarefas mundanas, mais ainda, através delas, o testemunho autorizado da presença e a atuação de Deus no mundo, devolver a Deus a criação nascida de suas mãos e fazer tudo isto com o testemunho de uma existência inteiramente dócil ao chamado à santidade que Deus dirige a todos e a cada um dos cristãos" (J. M. Román).

Em síntese, Frederico Ozanam como Vicente de Paulo foi pioneiro numa visão de igreja que o Vaticano II marcou fortemente em seus documentos. Um conceito de igreja predominantemente laical que Frederico Ozanam herdou de São Vicente de Paulo. Uma igreja na qual o Pobre é o espelho de Cristo e que precisamente por isso é uma igreja viva e que se manifesta aos olhos dos seguidores de Cristo. Uma igreja enraizada na mensagem de amor proclamada por Jesus de Nazaré. Mensagem de amor que Ozanam quis traduzir na vivência pessoal da caridade, porém uma caridade que reunisse todos estes três elementos, dos quais dois deles: a profissão de fé e o estado de vida permaneceram indeterminados por longo tempo. Já com o primeiro deles não foi assim. A vivência pessoal do evangelho, que descobriu ainda jovem, primeiro de forma confusa, porém progrediu e depois ainda mais rápido com absoluta clareza. Esta vivência pessoal do evangelho que descobriu tão cedo em alguns elementos e que permaneceram imutáveis e foram incorporados como definitivos em sua vida. Foram estes os pontos"chaves" de todo seu ser e agir, pois aprendeu com seu patrono e mentor Vicente de Paulo e constituem hoje no carisma e identidade de seus seguidores, os vicentinos.

O primeiro elemento desta vivência pessoal do evangelho, Frederico Ozanam especificou num projeto de restauração da sociedade sob a orientação do catolicismo. Este foi o sonho de toda sua vida e herdou de seu patrono São Vicente de Paulo. Desde os primeiros anos de estudante em Sorbonne, Frederico Ozanam formulou o binômio:  Verdade – Igreja, como princípio de todo seu agir. Sua vida inteira foi de compromisso em defesa da verdade:"A verdade me agarrou mais do que a minha própria vida". Por outro lado, via a Igreja católica como aquela que tinha a custódia da verdade e por isso para Frederico Ozanam todas as distintas manifestações da verdade deveria ser considerada sob o prisma da Igreja. Este é o contexto de um de seus escritos: "todas minhas ambições me direcionam para a Igreja. Assim como seus triunfos me causam grande satisfação e alegria, sua tristeza e contradições me fazem estremecer". O Pe. Lacordaire deixou bem claro quando falando de Frederico Ozanam diz assim sobre o seu amor e entrega à Igreja: "Ozanam tinha um coração sacerdotal numa vida de homem secular. Na França de nossa época nenhum cristão amou tanto a Igreja como ele. Ninguém sentiu mais do que ele as suas necessidades e ninguém mais do que ele chorou com amargura as faltas de seus servidores".

Se Frederico Ozanam, com seus 18 anos de idade, realizou o ambicioso plano de defesa do cristianismo através da história das religiões, se centralizou todas as suas aspirações de vida na cátedra de Letras na Universidade de Sorbonne e se em seu exercício das leis, que ele abraçou obrigado por seu amor e respeito a seus pais trabalhou incansavelmente até conseguir a elaboração de uma doutrina social cristã, fez tudo isso porque concebeu desde os primeiros anos de sua juventude a vivência pessoal do evangelho como um projeto de restauração da sociedade sob a orientação do catolicismo e tomou como dever pessoal o propósito de mostrar o catolicismo como o inspirador e realizador da civilização da sociedade europeia.

Um segundo elemento de sua vivência pessoal do evangelho que haveria de ser como o princípio vital do primeiro elemento descrito anteriormente, não é outra coisa senão a vivência da caridade na condição de leigo. Isto o impulsionou a ter o amor e a caridade como norma fundamental de sua vida e chegar por ele à santidade. De novo aparece o espírito eclesial de Frederico Ozanam. A força motriz da Igreja é Cristo, que se encarnou na humanidade e se fez Pobre por amor aos homens. Só assim o apostolado de caridade poderia conseguir o objetivo primordial que Frederico Ozanam se propôs a realizar como linhas de ação de todo seu agir: a restauração da sociedade sob a orientação do catolicismo tomando como norma fundamental de vida o amor e a caridade centralizada na visão de uma associação de amigos leigos comprometidos a trabalhar pelos Pobres.

Fonte: Autor: Teodoro Martín, C.M. • Ano de publicação original: 1994. • Fonte: Ozanam, 1994. • Traduzido do espanhol para o português por: Joelson Cezar Sotem, CM – 13/set/2012

4 de setembro de 2013

Qual a importância de uma espiritualidade conjugal?

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Uma graça que santifica o casal

Espiritualidade significa viver segundo o Espírito. Espiritualidade conjugal é aprender, do Espírito, como viver conjugado, unido, é para ser vivida na carne, situada no tempo e no espaço, é concreta, dinâmica. É uma espiritualidade encarnada, uma graça que santifica o casal não apesar da vida conjugal, mas por meio dela. A vida conjugal torna-se instrumento e meio de vivência e expressão da espiritualidade.


Podemos falar em espiritualidade conjugal exatamente porque foi o próprio Deus que, ao longo das páginas da Sagrada Escritura, se apropriou dessa imagem para expressar e manifestar seu infinito amor pela humanidade. O amor conjugal precisa ser anúncio explícito do amor apaixonado de Deus pela humanidade.

Não existe nenhum amor mais intenso e profundo do que o amor conjugal. O envolvimento amoroso de um casal é o mais pleno que existe, pois implica corpo, alma, coração, sentimentos, emoções, sangue e sonhos. Tudo isso porque Deus o fez instrumento de revelação do seu amor por nós. 


O maior objetivo da espiritualidade conjugal é ajudar o casal a vencer a indiferença religiosa do ser humano moderno. Não existe praga pior do que a indiferença, que é sempre egocêntrica e infantilizadora. O indiferente religioso não é contra Deus nem contra as religiões, ele é sempre a favor de si mesmo. Pior do que a idolatria é a egolatria.


Muitos pensadores e filósofos previram o fim das religiões. Os grandes pensadores ateus anunciavam para breve o fim da era da dependência religiosa, ópio do povo, cachaça de má qualidade, infantilismo psicológico, instrumento de dominação capitalista e reflexo do primitivismo humano, que não conseguia explicações e soluções científicas para os problemas. Freud, Marx, Nietzsche, Ferbauch, Comte, Simone de Beauvoir e tantos outros que apregoaram o fim dessa praga chamada religião.

Todas as suas previsões deram em nada. Nunca o mundo buscou tanto o alimento para sua alma. Apesar de todos os progressos tecnológicos e científicos, o homem do século XXI é profundamente religioso, embora, muitas vezes, sua experiência religiosa não vá além de princípios irresponsáveis de autoajuda. Não tenho dúvida de que toda busca desenfreada pela autoajuda é transferência imatura da busca pela ajuda do Alto.

A espiritualidade conjugal, e como consequência a espiritualidade familiar, tem a grande missão de ajudar o ser humano moderno a encontrar os caminhos para essa ajuda do Alto.

A falta de uma espiritualidade conjugal tornou-se um dos grandes assassinos do amor. Sem a força do Alto, ninguém persevera no amor. Sem a força do Alto ninguém passa da paixão ao amor. Sem a força do Alto é impossível achar sentido para a vida conjugal.


Padre Léo, scj

2 de setembro de 2013

Jesus vai voltar?

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Renovamos nossa espera na liturgia eucarística

A história da salvação acontece em diversas etapas. Deus criou e organizou o homem na face da Terra, depois escolheu um povo a partir de Abraão. Com essa escolha, o Senhor passa a ter um povo sobre a Terra. Logo depois, o Seu povo, por meio de Moisés, recebe a Lei, ou seja, o modo como viver neste lugar. Tudo isso apontava para o dia mais importante da nossa salvação: a chegada de Jesus.


Paulo descreve em Gálatas: "Chegada a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho nascido de uma mulher" (Gl 4,4). Jesus vem, cumpre Seu papel de revelar o Pai, redime a humanidade morrendo na cruz, forma Sua Igreja enviando o Espírito Santo e estabelece um tempo para essa Igreja até que Ele volte.

Portanto, a espera da segunda vinda de Cristo é renovada todos os dias, no mundo inteiro, na liturgia eucarística, pela Igreja, ao dizer "todas as vezes que comemos deste pão e bebemos deste cálice, anunciamos, Senhor, a vossa morte, enquanto esperamos a vossa vinda".

Nenhum teólogo ou Igreja cristã tem dúvida quanto à segunda vinda do Senhor. Quando os primeiros cristãos perguntaram se era o momento de Jesus restaurar Jerusalém - como encontramos no livro dos Atos dos Apóstolos -, Ele respondeu: "não cabe a vós saber o dia e a hora, não cabe a vós vos preocupardes com este momento" (At 1,7-8). Porém, Jesus não negou esse momento, Ele não disse que a Igreja não deveria se preocupar com esse assunto. 


Vejamos: a Igreja acabara de nascer, tinha, agora, a missão de levar o Evangelho até os confins da terra como descrito no versículo 8 de Atos dos Apóstolos: "Descerá sobre vós o Espírito Santo, que lhes dará força e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, na Judeia e na Samaria e até os confins da terra".


A preocupação central da Igreja recém-nascida era levar a mensagem da salvação ao mundo inteiro. Para isso, seria revestida da força do Espírito Santo e não deveria preocupar-se tanto com a segunda vinda do Senhor.

Mas apesar de os primeiros cristãos estarem focados em levar o Evangelho até os confins da terra, suas pregações traziam a visão escatológica. O capítulo 3 de Atos dos Apóstolos narra o milagre realizado por Pedro e João a caminho do templo. Esse fato assombrou o povo, que, atônito, acercou-se dos dois. Pedro, então, aproveita o momento para anunciar Jesus e convidá-los a crerem n'Ele, a se arrependerem e a se converterem, a fim de que os pecados lhes fossem apagados. Imediatamente, fala-lhes da segunda vinda do Senhor quando afirma: "Então enviará Ele o Cristo, que vos foi destinado, Jesus, a quem o céu deve acolher até os tempos da restauração de todas as coisas, das quais Deus falou pela boca de seus santos profetas" (At 3,20b-21).

Também o apóstolo Paulo, na primeira das diversas cartas que escreveu, no livro mais antigo do Novo Testamento, já demonstrava preocupação com a segunda vinda do Senhor, como podemos constatar no capítulo 5,23 da primeira epístola aos Tessalonicenses: "O Deus da paz vos conceda santidade perfeita; e que o vosso ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da Vinda de nosso Senhor Jesus Cristo."

Tanto Pedro, o apóstolo dos judeus, como Paulo, o apóstolo dos gentios, trabalharam esse tema em suas pregações e escritos. Ao lermos Mateus - "e este Evangelho do Reino será proclamado no mundo inteiro como testemunho para todas as nações. E então virá o fim" (Mt 24,14) -, percebemos que há um tempo estabelecido para a vinda do Senhor. Este tempo está compreendido entre o início da propagação do Evangelho e a chegada dessa mensagem ao mundo inteiro.

Em Atos, os anjos afirmam que, do mesmo modo que viram Jesus subir, o verão descer dos céus: "Os anjos disseram: 'Homens da Galileia, por que estais aí a olhar para o céu? Este Jesus que foi arrebatado dentre vós para o céu, assim virá do mesmo modo como o vistes partir para o céu'" (At 1,11). Também no final dos Evangelhos vemos Jesus dizendo de sua segunda vinda gloriosa e dos diversos sinais que antecedem esse evento.

Os primeiros cristãos cumpriram a missão de levar o Evangelho e advertiram a Igreja sobre a vinda gloriosa do Senhor. Cabe à Igreja dos dias atuais - ao identificar os diversos sinais precursores e constatar que o Evangelho está chegando aos confins da terra - se deter sobre este assunto com mais profundidade.

Miguel Martini
Fundador da Com. Renovada Santo Antônio de Pádua
Belo Horizonte (MG)


(Conteúdo extraido do livro "A Segunda Vinda de Cristo" da autoria de Miguel Martini)