Já demos início à Quaresma deste ano e, com ela, trazemos explicitamente o nosso desejo de mudança interior e de conversão. Para muitos, é tempo de grandes propósitos, de muita ação em favor dos mais necessitados, de acentuadas mortificações que fazem notar a sede que a alma tem de uma radical mudança. Para outros, no entanto, é um momento favorável para fazer pouco e se destacar de tudo o que é grande, de se dedicar ao mínimo, e o essencial é buscar colher com profundidade os frutos dessa escolha. Claramente, o fazer pouco aqui não quer dizer mesquinhez, mas percepção de que é preciso desacelerar para contemplar o que nos passa diante e não vemos. Cada um de nós delineamos um projeto pessoal para a Quaresma, em vista de uma meta a ser alcançada e, independente do quanto audaz este seja, o importante é percorrer o caminho quaresmal com empenho e um bom toque de zelo.
O evangelista Matheus que, escrevendo ao seu povo hebraico, também nos introduz à lógica da vida eterna. Depois de ter escrito o discurso de Jesus sobre a vinda do Filho do homem e ter convidado à vigilância, transcreve as parábolas de Nosso Senhor sobre o reino e nos presenteia uma síntese de doutrina do evangelho em vista do último juízo.
Quaresma, tempo de caridade
"Disse Jesus aos seus discípulos: 'Quando o Filho do Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso. Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda. Então, o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: 'Vinde benditos de meu Pai! Recebei como herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome e me destes de comer; eu estava com sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me recebestes em casa; eu estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes de mim; eu estava na prisão e fostes me visitar'. Então os justos lhe perguntarão: 'Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? Com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos como estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso, e fomos te visitar?' Então o Rei lhes responderá: 'Em verdade eu vos digo, que todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes!" (Mateus 25,31-40).
Reflitamos um pouco sobre alguns aspectos importantes deste texto em vista do nosso compromisso de caridade neste tempo da Quaresma. Não é difícil perceber que a expressão Filho do homem se refere ao Messias que voltará e que já os judeus esperavam com tanto ardor. Ele seria para eles aquele libertador político feroz que emanciparia o povo que por séculos foi oprimido por outras nações e portaria a Israel o cumprimento de toda promessa. Então, um messias pobre, desvinculado da fama, indagador sobre o modo de se viver os preceitos e que, ao invés de optar pelos ricos e doutos, preferiu os pobres e frágeis, não era a figura ideal e esperada. Do Cristo se esperava glória e potência, que fosse o Senhor da causa de um povo que bramava também por revanche. Para a decepção de muitos e incompreensão de outros tantos, foi tudo ao contrário. Este também é o nosso drama quando de Deus esperamos que corresponda ao nosso projeto de divindade e o vemos muito mais como o Senhor "resolvedor" dos problemas. Cá entre nós, quantas pessoas já vimos ir embora por que não ficaram satisfeitas com o modo de Deus de ser Deus? Não existem dois projetos divinos nem um modo contrastante de Deus se apresentar. O projeto é único, feito para aqueles aos quais o reino é preparado: para mim e para você. "Vinde, benditos de meu pai!".
Deus está onde estão os seus filhos
Já sabemos que o Messias não veio aos moldes que muitos israelitas esperavam. O que dizer então se Deus se decidiu se manifestar no faminto, no sedento, no estrangeiro, no pobre, no doente, no aprisionado? Nada a dizer senão que, se é assim, a nossa opção pelos mais frágeis deve ser ainda mais concreta e talvez racional.
Perdoem-me mais uma referência ao mundo hebraico, mas para os judeus, ainda hoje, a esmola (Tzedaka) é uma questão de justiça e não uma oferta voluntária que exprime a generosidade em relação a alguém. É uma obrigação que independe do nosso sentir e que me vincula mesmo que eu não tenho quase nada a dar. Isso é louvável e me faz pensar que também nós, no nosso compromisso de caridade quaresmal, não devemos esperar o sentir compaixão por alguém para poder ajudá-lo! Diante de nós sempre tem um mais faminto, um mais sedento, um mais doente e aprisionado do que eu. Talvez, ele não esteja abandonado na rua da nossa casa, mas esteja dentro dela, da nossa comunidade ou do nosso trabalho. Nosso Deus está ali, aliás, Ele está lá onde estão seus filhos e, por isso, "todo lugar é lugar e todo tempo é tempo" para estar com Cristo.
Não é servir os pobres pelos pobres e os doentes pelos doentes, mas por Cristo
Sacie a sua sede e fome de Cristo
Escrevendo este breve artigo para esta Quaresma, decidi ir até a biblioteca no setor de teologia para pegar um livro. E, chegando lá, logo encontrei uma mensagem de um jovem que, desiludido com toda a imagem que se tinha feito de Deus, escreveu: "Deus deixou de acreditar. Deixou de ajudar as promessas dos políticos e mudou de número telefônico, assim não mais podemos deixar para Ele as nossas barulhentas orações, mas somente as silenciosas na sua secretaria eletrônica. Ele não morreu por nós, somos nós que morremos por Ele". Não posso conhecer a pessoa que escreveu esse texto, mas a imagino como alguém inteligente, de vigor e com muito desejo de viver, mas que provavelmente não consegue encontrar respostas aos seus questionamentos. Talvez, ele ou ela não saiba mesmo que não temos resposta para todos eles e que a lógica de Deus não é a que aprendemos na escola. Ela, às vezes, revira tudo o que considerávamos certo e coeso, nos desveste de nós, da nossa pretensão de saber e nos reveste de uma sabedoria que nos alimenta profundamente.
Caro irmão e irmã, que não sejamos nós a não permitir que o nosso próximo sacie a sua sede e fome de Cristo, da verdade, da água e do pão. Que não sejamos nós a aprisionar e a deixar morrer a alma doente. Que a nossa Quaresma seja regada por um desejo vivo e concreto de amar o próximo e de por ele se entregar. Nos comprometamos a permitir que o outro veja o Cristo ressuscitado em nós e que também nós saibamos ver o Cristo crucificado e sedento no nosso próximo.
Um abraço e boa Quaresma!
Seminarista Hugo Mota
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