Sabemos que, para cada coisa, existe um instrumento adequado ou a melhor ferramenta. Você não tentaria esquentar uma pizza no freezer ou usar uma faca para cortar as unhas. Também para o estudo, esta é a primeira e uma das mais importantes perguntas a se fazer: qual é o material que eu preciso para entender determinado assunto? Ou, do que se trata este livro?
E, mesmo que seus assuntos sejam diversos e abrangentes, sempre deverá existir uma boa definição identificando o que realmente se trata, qual o seu escopo ou foco principal. Por exemplo, encontramos lindíssimas reflexões em Fernando Pessoa, como: "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce" e "a Cruz no alto diz, que o que me há na alma e faz em mim a febre de navegar, só encontrará de Deus na eterna calma, o porto sempre por achar". Nem por isso podemos dizer que suas obras são espirituais ou tratam de espiritualidade. É poesia, são obras poéticas.
Pensando nisso, pode-se perguntar: do que se trata a Bíblia, afinal de contas? Qual seu escopo, qual seu objetivo final e propósito? Hugo de São Vítor o define assim:
"A matéria [o assunto] das Sagradas Escrituras consiste na obra da restauração (…) [que] é a Encarnação do Verbo com todos os seus mistérios, seja aqueles que o precederam desde o início dos séculos, seja aqueles que o seguirão até o fim do mundo."
Isto é, todos os livros da Bíblia estão focados na salvação e santificação do ser humano. Isso só foi possível por meio da história e só é possível atualmente, na vida de cada um de nós, por causa da encarnação do Verbo e de tudo que está relacionado à humanidade e divindade de Cristo, caminho, verdade e vida (Jo 14,16).
Foto ilustrativa: Arquivo CN
A Bíblia está focada na salvação do ser humano
Indo mais fundo, cada página, cada palavra, cada história narrada está ordenada para este objetivo último de santificação e salvação. Um livro espiritual que transmite espiritualidade através da Verdade Revelada. E, como vimos no artigo "Os sentidos espirituais da Palavra de Deus", estas altíssimas verdades espirituais também podem ser fatos históricos (sentido literal), nos ensinam a viver bem entre irmãos (sentido moral), abrem nosso entendimento para enxergar além da realidade que nos cerca (sentido alegórico) e nos explicam realidades da vida celeste (sentido anagógico).
Se os livros bíblicos existem para nos levar à santificação nesta vida e à salvação eterna como consequência natural disso, fica claro o porquê de os sentidos espirituais da Palavra de Deus deverem ser buscados e o motivo de serem tão importantes. Na verdade, o sentido espiritual é tão importante que, às vezes, o sentido literal é deixado de lado e a leitura se torna confusa ou um pouco irreal.
Por causa de maus pregadores e péssimos estudiosos, é comum que, ao se depararem com trechos bíblicos aparentemente confusos, contraditórios e, até mesmo ofensivos, ouvirmos explicações como: "Não era bem isso que o autor sagrado quis dizer… Naquela época, isso parecia normal para as pessoas… No original não está assim, é que não existe uma boa tradução para este caso".
Há um profundo mistério envolvido em cada trecho bíblico
Podemos respeitar a opinião de todos, mas é sempre bom nos alinharmos com os verdadeiros doutores da Igreja, os que foram testados em sabedoria e santidade. Afinal, também vimos, no artigo anterior, que a Bíblia é um livro selado e somente o Cordeiro o abre e o dá a conhecer a quem Ele ama, seus santos. Deus nos convida à santidade e, somente através dela, temos um verdadeiro encontro com ele: "Eis que estou à porta e bato, se alguém ouvir a minha voz e me abrir a porta, entrarei nele e cearei com ele e ele comigo" (Ap 3, 20).
Santo Agostinho explicava que, ao se deparar com um trecho obscuro e aparentemente absurdo nas Sagradas Escrituras, deveríamos redobrar a atenção: existe uma verdade espiritual profunda ali. Um ensinamento e um mistério que nos abre as portas para a santificação. Para ficar mais claro, examinemos dois exemplos:
O desejo da Sabedoria
No primeiro, Jacó, após trabalhar sete anos para ter o direito de se casar com Raquel, passa a noite de núpcias com Lia, irmã dela, e só nota o engano promovido por seu sogro Labão, no dia seguinte (Gn 29, 20-27).
Interpretada literalmente, a narração beira o absurdo. Que homem, amando profundamente uma mulher ao ponto de se sujeitar a sete anos de trabalho por ela, não reconheceria uma troca destas na noite de núpcias? Deixemos as explicações simplórias ou as desculpas que denigrem a Palavra de Deus. Siga Santo Agostinho: que verdade importante e misteriosa há aí que só os que buscam a santidade veem? Ouça Hugo de São Vítor: o assunto das Sagradas Escrituras sempre é a obra da restauração do homem caído pelo pecado.
Um discípulo de Hugo, chamado Ricardo de São Vítor (1110-1173), explica que esse equívoco grotesco acontece não somente com Jacó, mas com todos aqueles que buscam a Santidade. De fato, Raquel é o símbolo da Sabedoria e todos passam a desejá-la assim que percebem a sua existência através da conversão pessoal. A Bíblia é explícita em dizer que "Jacó serviu por Raquel sete anos, que lhe pareceram dias, tão grande era o amor que lhe tinha" (Gn 29,20).
Não há santidade sem busca das virtudes!
Quem lê a Palavra e não deseja encontrar as revelações de Deus? Quem não quer sua sabedoria? No entanto, ao se direcionar à busca da santidade, essa não lhe é dada facilmente. Existe luta, suor, dedicação (representada pelos sete anos de trabalho) e, finalmente, nunca haverá santidade sem que antes haja a conquista das virtudes. Essa é Lia! A irmã mais velha da Sabedoria é a Virtude. E não existe encontro íntimo com a santidade, sem antes um verdadeiro casamento com as boas obras.
Como todo homem que quer ser legitimamente santo (casar-se com Raquel), Jacó precisará primeiro possuir a virtude (casar-se com Lia). Ou todo aquele que deseja ardentemente a sabedoria de Deus precisa entregar-se à guerra interior (os sete anos de trabalho) de dominar as suas paixões e vícios, possuir a virtude (unir-se com Lia), para depois ter direito à Sabedoria almejada (unir-se com Raquel).
Santificar-se é unir-se ao Cristo
No segundo exemplo, vemos Rute, a moabita, que, após ficar viúva, seguiu sua sogra, também viúva, para a terra de Israel (Rt 1,14). Embora todo o livro de Rute tenha um conteúdo alegórico maravilhoso, existe um trecho que é uma verdadeira pedra de tropeço para aqueles que não contemplam o sentido espiritual da Bíblia e seu retrato-estímulo para nossa santidade e salvação.
Rute narra à sua sogra Noemi o acolhimento que teve por parte de Booz, senhor de muitas terras em Belém, dizendo que ele permitiu que ela andasse recolhendo as espigas caídas no chão para que as duas não passassem fome. Logo após, recebe um conselho inusitado de sua sogra. Noemi recomenda que ela tome um banho, coloque seu melhor vestido, espere o senhor Booz estar bem satisfeito com a comida e bebida, deitar-se para dormir, para que a moça, sorrateiramente, levante a coberta de seus pés e deite-se naquele lugar. O objetivo? Booz acordaria e encontraria Rute deitada aos seus pés, debaixo de sua coberta. A partir daí, a moça deveria fazer o que ele dissesse (Rt 3,1-9).
Deixemos de lado as desculpas de que "se fazia assim em Israel naquele tempo", porque não é verdade nem lá e nem em lugar nenhum. A evidente falta de lógica na situação nos leva a pensar: isso é símbolo de quê? Se, como vimos, a Palavra de Deus trata prioritariamente da restauração e santificação humana, por que um livro inteiro para mostrar como foi gerado o avô do rei Davi, Obed, filho de Rute e Booz (Mt 1,5)?
A alma obediente de Rute
Uma das interpretações espirituais dos santos padres dos primeiros séculos, recolhida e sistematizada pelos teólogos da Abadia de São Vítor, em Paris, no século XII, é que o livro retrata a alma obediente (Rute), que parte em busca de Cristo (Booz).
Ela conta a história de Rute, nome que traduzido significa "a que se apressa". Rute é orientada por Noemi, ou "formosa", pois é o pregador que tem a beleza das virtudes e orienta a alma. É designado por uma mulher porque assim como as mulheres geram filhos, os que ensinam a Palavra geram almas para Deus.
Na passagem em questão, a alma obediente ao diretor espiritual que a orienta lava-se do seus pecados, veste-se com os vestidos das virtudes e boas obras e vai ao encontro do Cristo. Mas, por melhor que se prepare a alma, ela nunca estará a altura da dignidade do seu salvador. Por isso, deve esperar que o Cristo esteja saciado em cumprir a vontade do Pai, pois Ele mesmo diz que esta é sua comida e sua bebida (Jo 4,34). Só então, percebendo que o Salvador vê seu esforço pelas boas obras e entendendo que está saciado ao ver o Reino de Deus que se propaga, a alma pode se aproximar.
A sabedoria é o próprio Cristo
Mas não de qualquer maneira, não de igual para igual. Investigando humildemente o mistério da nossa redenção operada pela encarnação do Verbo, simbolizada por deitar-se aos seus pés (o membro mais próximo da terra) e aguardando que Ele a veja e a oriente devidamente. O objetivo final? A união plena com Cristo ou, como chamava Santa Teresa d'Ávila, o matrimônio espiritual.
Claro, não podemos esquecer que os sentidos espirituais estão baseados no sentido literal e o pressupõe, como tão bem determinou Santo Tomás de Aquino. Tão perigoso quanto acreditar que a Bíblia é somente um livro histórico com a narração de fatos que ocorreram a, pelo menos, dois mil anos, é ignorar seu sentido literal, inventando sentidos espirituais inexistentes. Por isso, a chave espiritual da Bíblia sempre será o encontro pessoal e profundo com Cristo, a verdadeira porta (Jo 10,9).
Fica, portanto, o convite para se unir com Lia, antes de chegar a Raquel. E de seguir os conselhos de Noemi, para finalmente encontrar-se com Booz. Recusando a vida de pecado e buscando com afinco a vivência das virtudes chegará o momento de desposar a Sabedoria, que é o próprio Jesus Cristo.
Fonte: https://formacao.cancaonova.com/biblia/historia/afinal-para-que-existe-biblia/