Com a desaceleração da pandemia ligada ao covid-19, pouco a pouco as cidades começam a retomar um ritmo "normal". Esse, com certeza, será um processo muito longo, pois acredito que ainda não temos ideia das reais consequências desta crise sanitária. Uma coisa é certa: muitas mudanças no nosso modo de vida acontecerão. Neste segundo texto sobre "a volta da quarentena", quero partilhar com você uma preocupação pessoal sobre as possíveis consequências das regras de distanciamento social.
Aqui, na França, antes mesmo dessa medida drástica para atravessar a crise, cerca de 12% dos franceses já viviam o drama da solidão e 24% da população se sentia só ou isolada (informações do site do ministério da saúde da França). Temos ainda outros números assustadores: dados de 2019 mostram que em 2018 mais de 8500 pessoas se suicidaram na França (média de um suicídio a cada hora!), e outras 200.000 tentaram cometer tal ato. O suicídio já é a maior causa de mortalidade entre pessoas de 25 a 34 anos. É assustador.
Claro que vários fatores levam ao suicídio, mas não posso deixar de ligar esses dois dados: solidão elevada e suicídio elevado! Sei que infelizmente o Brasil caminha nessa direção. Não sou médico, nem psicólogo. Quero dar somente minha palavra de padre que ama a vida e que se preocupa com o povo de Deus. Por favor, lembrem-se: somos a religião da encarnação. Essa verdade tem que mudar e transformar nossas relações – com nós mesmos e com o mundo.
Consequências do distanciamento social
"E o Verbo se fez carne e habitou entre nós" (Jo 1,14). Negligenciar as necessidades de nosso corpo e nossas necessidades relacionais é um erro gravíssimo com consequências dramáticas. Não somos anjos! Deus é Trindade: há uma relação perfeita de amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Somos criados à imagem e semelhança de Deus, ou seja, somos também seres de relação, feitos por amor, para amar e para sermos amados. Aprendi um ditado aqui, na França, muito pertinente: "cristão isolado é cristão em perigo".
Não fazemos parte de uma religião onde podemos viver nossa vida espiritual sozinhos. (Pequena consideração: existem pessoas chamadas de modo extraordinário à vida eremítica; vale destacar que os ermitas estão sozinhos, mas não isolados, pois sabem que estão em plena comunhão com Deus e com todas as realidades do mundo). Jesus, Deus que se encarnou, teve fome e sede, sentiu-se cansado, chorou a morte de seu amigo Lázaro, alegrou-se quando teve seus pés lavados e perfumados por Maria, estendeu a mão para curar e erguer pessoas excluídas, toucou e lavou os pés dos discípulos, partilhou pão e vinho, sentiu uma grande agonia antes de morrer… Poderia citar tantos outros exemplos que mostram a vida social e relacional de Jesus. Mas Jesus também se retirava para rezar sozinho. Tantas e tantas passagens do Evangelho mostram isso. Ele estava em tamanha comunhão com o Pai, que os apóstolos o admiravam de longe rezar. Um dia, quando voltava da oração, pediram a Ele: "ensina-nos a orar" (Lc 11,1). Sobre rezar sozinho, Jesus ensinou: "Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num lugar oculto, te recompensará" (Mt 6,6).
Mesmo se esses momentos "a sós" de Jesus com o Pai eram algo corriqueiro na vida de Jesus, e mesmo um ensinamento precioso para nós, o Senhor também se reunia sempre com o povo para rezar; essa oração comunitária se dava na sinagoga com grande assembleia, ou então apenas com os discípulos, ou ainda simplesmente em alguma família. Neste sentido, Ele também nos diz que "onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles" (Mt 18,20). Na nossa caminhada cristã não escolhemos entre viver a nossa fé "eu e meu Deus" ou "eu com o povo de Deus" – precisamos dessas duas dimensões. Muitos puderam aprender na quarentena a crescer numa vida espiritual mais íntima com Deus, sozinho em casa e com os meios possíveis: terço, leitura da Palavra, pregações televisionadas, comunhão espiritual, oração em família, dentre outros.
Estou seguro de que tudo isso é benéfico e essencial para nossa caminhada cristã. Que bom se você cresceu neste ponto. Se não for o caso, nunca é tarde! Não se desespere. Muitas vezes, o ritmo frenético de antes da quarentena nos "impedia" de crescer na vida de oração pessoal. Mas, depois de tudo isso, vamos retomar esse ritmo louco e teremos que encontrar meios de manter e crescer ainda mais na oração pessoal e familiar, sem esquecer a importância da nossa oração comunitária. Pouco a pouco, segundo a legislação de cada lugar, vamos retomar nosso ritmo habitual. Não ache que você pode continuar se contentando de missa, pregações e orações pelas redes sociais. Estes não são os meios ordinários de comunhão do cristão. Deus nos deu um corpo com sensações e sentimos, e com estes, a capacidade de entrar em relação uns com os outros.
O distanciamento social necessário para proteção não é uma regra, e sim exceção
Repito: "o Verbo se fez carne", e Ele chorou, sorriu, sentiu, tocou… na última ceia Jesus nos deu três ordens importantes: "tomai, bebei, comei… isso é meu corpo, isso é meu sangue" (cf. Mt 26,26-28). Vamos ser sinceros: é impossível colocar esses verbos em prática através das mídias. São gestos que pedem nossa presença real. Não se faca de desentendido: o distanciamento social necessário para proteção não é uma regra, e sim uma exceção. Quando pudermos, e da melhor maneira possível, precisamos nos relacionar novamente para vivenciar nossa fé juntos, como povo de Deus. Somos o corpo de Cristo, e um corpo funciona com seus membros agindo juntos. Tocar, passar a mão na cabeça, bater nos ombros, abraçar, beijar e apertar de a mão… tudo isso faz parte das relações humanas, e sobretudo da nossa cultura brasileira. Cada gesto feito de maneira casta transmite uma mensagem. Não podemos perder isso. Não creio que exagero dizendo que cortar nossas relações humanas é mutilar a nossa fé.
Isso vale também para a maneira com a qual estamos realmente presentes nos diversos eventos da nossa vida: se vou à missa, eu fico atento às leituras, à homilia e aos irmãos; se comungo, penso no que estou fazendo e rezo tendo a certeza de que Deus está comigo; se exerço a caridade, o faço em nome de Jesus, e não para me promover; participo de retiros ou de encontros com o intuito de realmente crescer e me converter. Pequenas atitudes feitas com ardor e maior zelo podem transformar nossa relação com Deus e com os irmãos.
Enquanto padre, dou ênfase na nossa vida espiritual. Mas convido você a utilizar esse mesmo princípio em tudo o que você faz – na escola, na faculdade, no trabalho, numas ONG ou em qualquer outro lugar onde você esteja. Que seus pequenos gestos sejam gestos de transformação para o bem. O mundo conta conosco. Deus conta conosco. Que Deus nos dê força e sabedoria para sermos aquilo que realmente somos: filhos amados e membros do corpo de Cristo.
Padre André Favoretti
Natural de Vitória – ES, foi ordenado sacerdote dia 25/06/2017, na diocese de Fréjus-Toulon, onde atua como missionário. Antes de ser padre, concluiu uma licenciatura em Geografia (UFES), foi professor e fez uma pós-graduação em filosofia (UFOP).